Queimar dentista
ou chutar
cachorro?
A resposta para
a pergunta do
texto é clara:
nenhum dos dois,
“né, Bial”? Mas,
como provocação
inicial, ajuda a
despertar o
interesse das
pessoas.
Cinthya Magaly
Moutinho de
Souza, 47 anos,
dentista, foi
queimada viva em
seu consultório,
em São Bernardo
do Campo, na
região do ABC
Paulista, no dia
25 de abril
deste ano. Dias
depois começou a
circular nesta
grande lata de
lixo virtual,
chamada Facebook,
o vídeo de uma
doente mental
espancando um
filhote de
poodle aqui em
Porto Alegre.
Respondam com
toda
sinceridade:
qual das duas
notícias causou
maior
“repercussão”
(seja lá o que
isso queira
dizer) na mídia
nacional? Por
favor, não
argumentem que a
primeira foi o
relato de algo
que já havia
acontecido, e
que a segunda
foi uma
barbaridade
gravada e
transmitida
quase “em tempo
real”.
Há tempos venho
afirmando, ainda
que para
desgosto de
vários
jornalistas
sérios que
existem no país,
que QUASE TODA a
imprensa
brasileira está
pautada por uma
“agenda
politicamente
correta”. Eu não
seria tolo a
ponto de afirmar
que “Facebook” é
jornalismo
verdadeiro. Para
ser sincero, não
sei nem como
definir essa
coisa. Para mim,
não passa de Big
Brother Brasil
levado à
internet. Mas
tudo bem. Essa
porcaria de rede
social não é o
assunto do
texto. Por outro
lado, seria
muita
ingenuidade
pensar que a
repercussão que
aquela maldade
com o cachorro
teve não
influenciou (e
muito) os
grandes jornais.
Insisto, e não
vou mudar de
ideia. Todos os
crimes assim são
definidos,
porque estão
previstos em
lei, mas (e aí o
objetivo do
artigo) vivemos
numa época em
que alguns deles
são mais
abomináveis do
que outros.
Afirmo haver
sido criada uma
agenda
politicamente
correta para nos
sentirmos
chocados. Uma
criança
brasileira
pobre, morrendo
num hospital
imundo do Rio de
Janeiro, só para
dar um exemplo,
não é tão
“chocante”
quanto um
ciclista, seja
lá de que classe
social for,
atropelado numa
passeata de
final de semana.
Um filhote de
foca, agonizando
numa praia
gaúcha, é
infinitamente
“mais sério” do
que fraude com a
verba da merenda
escolar. Um gay
que levou uma
surra na saída
de uma balada em
São Paulo pode
levar o país “às
lágrimas”,
enquanto um
policial militar
paraplégico após
um tiroteio na
Baixada
Fluminense é
esquecido em
três dias.
Isso é o que
está acontecendo
na sociedade e
no jornalismo
brasileiros!
Gostaria de
saber quando
algum professor
universitário
vai ter tempo e
disposição para
escrever sobre
isso de maneira
mais séria que
um simples
médico aqui de
Porto Alegre.
Enquanto espero,
vou continuar
assistindo a
esse festival de
“crimes do
século XXI”
transmitidos
pelas redes
sociais, mudando
os nossos
valores mais
profundos sobre
a gravidade que
merece ser
atribuída àquilo
que nos
apresentam. Dia
após dia diminui
nosso espanto,
reduz-se a nossa
sensibilidade e
perdemos as
primeiras
condições para
sermos
considerados
humanos – a
caridade e a fé
em Deus.
Não tenho mais
dúvida alguma:
quem queima
pessoas, estupra
e assalta no
Brasil de 2013
ainda poderá ser
considerado um
“excluído
social”, alguém
que “não teve
educação” nessa
“sociedade
neoliberal” e
que pode até ter
sua pena
reduzida, embora
suas razões não
se justifiquem.
Para quem chuta
cachorro, não!
Esse é um
criminoso
irrecuperável!
Deveria ser
colocado em
prisão de
segurança máxima
e esquecido lá
para o resto da
vida!
Pobre país que
tem uma imprensa
dessas... A
imprensa do
aquecimento
global, dos
ciclistas e do
casamento gay...
A imprensa dos
médicos cubanos
e das cotas
raciais... A
imprensa em que
notícia sobre
queimar uma
pessoa é muito
menos grave que
chutar um
cachorro... Essa
é a imprensa do
Brasil!
O autor é médico
em Porto Alegre,
RS.