O Brasil,
enquanto a
noite
não chega
Enquanto a Noite
não Chega
é o título da
obra de Josué
Guimarães
publicada em
1978. Nem de
longe é um
romance que
possa ser
considerado
“comum” na nossa
literatura.
Aborda temas que
estavam, e estão
até hoje, muito
distantes
daqueles que se
tornaram best
sellers ou
cânones da
academia – os
dois únicos
critérios
utilizados para
avaliar a
produção
literária
ocidental... rss...
rss.
O livro trata
fundamentalmente
do tempo
e da morte.
Foi escrito em
plena época do
regime militar,
quando ainda
existia no
Brasil alguma
referência em
termos de
certo e
errado, e
algum paradigma
a orientar a
sociedade no
sentido da
transcendência
destes valores.
Jamais naqueles
dias alguém
pensou que o fim
de um tipo de
governo poderia
significar o fim
de um tipo de
moral.
Na década de
1970, nenhum
brasileiro
poderia
acreditar que
crucifixos
seriam retirados
dos tribunais
por uma demanda
das lésbicas,
que chutar
cachorros
tivesse a mesma
repercussão na
mídia que
queimar
dentistas, ou
que as pessoas
teriam vagas na
universidade
garantidas pela
cor da pele.
Duvido que o
doente mental
mais grave
solicitasse ao
seu psiquiatra a
vinda de 6.000
médicos de
outros países,
ou que as
famílias dos
criminosos mais
perversos
tivessem um
auxílio
financeiro do
governo enquanto
seu “ente
querido”
cumprisse pena.
Não me lembro de
ter visto algum
personagem dos
Trapalhões,
do Chico
Anísio Show,
ou do Viva o
Gordo
sugerir que
cirurgia de
mudança de sexo
(é esse o nome
politicamente
correto?) fosse
feita
gratuitamente
com dinheiro
público, ou que
uma criança
pudesse ser
educada por dois
marmanjos como
se eles fossem
seu pai e
sua mãe.
Não me recordo
de nenhum
general
brasileiro
alcoólatra,
semianalfabeto
ou fotografado
lendo livros de
“cabeça para
baixo”. Não
havia hospitais
com médicos
chefiados por
enfermeiras, os
professores não
levavam surras
dos alunos, e os
policiais não
moravam nas
mesmas vilas que
os traficantes
com quem
trocavam
tiros...
Quando penso em
tudo isso tenho
plena
consciência de
que olho para o
passado e vejo –
até certo ponto
– aquilo que
gostaria que o
presente fosse.
Sinto, como a
maioria das
pessoas, uma
saudade infinita
da infância, e
de um tempo que
já não volta
mais. Entendo
também que muita
gente que está
agora lendo o
que escrevo pode
lembrar com
muita razão que
nem tudo “era um
mar de rosas”.
Sobre este ponto
não há
discussão. Além
de Deus, nada a
meu ver é
eterno, mas
ainda assim acho
que houve uma,
talvez apenas
uma, perda que
foi irreparável:
a da nossa
capacidade de
indignação! Essa
não existe mais
há muito tempo.
Quebrou-se a
espinha dorsal
do país quando
se destruiu, aos
poucos e
metodicamente,
num trabalho
começado ainda
na década de
1960, o conceito
de Nação e a
crença sincera
num Deus
apolítico...,
numa força
superior e
eterna, capaz de
ser a fonte do
amor gratuito e
da caridade tão
necessária, a
honestidade
intelectual e a
esperança de um
povo.
Desse processo
todo nada mais
restou além da
pobre família
brasileira. É
ela agora,
sozinha, quem
tem que fazer
também o papel
de um Deus e de
uma Pátria que
há muito foram
esquecidos. Dia
após dia ela vai
sobrevivendo a
tudo e a todos –
não da caridade
de quem a
detesta (como
cantou Cazuza),
mas de quem a
ignora. Nos
lares mais
pobres do Brasil
ela ainda é
contra a
liberação das
drogas, faz
oposição cerrada
ao aborto e ao
casamento gay e
vê, com olhos de
gente simples e
desconfiada,
esse “tal de
aquecimento
global”.
Isolada num país
moralmente
tetraplégico, a
família
brasileira
espera quieta a
sua hora chegar,
mais ou menos
como os
personagens de
Josué Guimarães
– Seu Eleutério
e Dona Conceição
– sempre
vigiados pelo
amigo coveiro,
sempre lembrando
um tempo que já
passou.
Eternamente
esperando...
É o próprio
Brasil que
espera...
enquanto a Noite
não Chega...
Para o meu pai.
O autor é médico
em Porto Alegre,
RS.