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Crônicas e Artigos

Ano 7 - N° 334 - 20 de Outubro de 2013

MILTON SIMON PIRES 
cardiopires@gmail.com

Porto Alegre, RS (Brasil)

 
 



O Brasil, enquanto a
noite não chega
 


Enquanto a Noite não Chega
é o título da obra de Josué Guimarães publicada em 1978. Nem de longe é um romance que possa ser considerado “comum” na nossa literatura. Aborda temas que estavam, e estão até hoje, muito distantes daqueles que se tornaram best sellers ou cânones da academia – os dois únicos critérios utilizados para avaliar a produção literária ocidental... rss... rss.

O livro trata fundamentalmente do tempo e da morte. Foi escrito em plena época do regime militar, quando ainda existia no Brasil alguma referência em termos de certo e errado, e algum paradigma a orientar a sociedade no sentido da transcendência destes valores. Jamais naqueles dias alguém pensou que o fim de um tipo de governo poderia significar o fim de um tipo de moral. 

Na década de 1970, nenhum brasileiro poderia acreditar que crucifixos seriam retirados dos tribunais por uma demanda das lésbicas, que chutar cachorros tivesse a mesma repercussão na mídia que queimar dentistas, ou que as pessoas teriam vagas na universidade garantidas pela cor da pele. Duvido que o doente mental mais grave solicitasse ao seu psiquiatra a vinda de 6.000 médicos de outros países, ou que as famílias dos criminosos mais perversos tivessem um auxílio financeiro do governo enquanto seu “ente querido” cumprisse pena. Não me lembro de ter visto algum personagem dos Trapalhões, do Chico Anísio Show, ou do Viva o Gordo sugerir que cirurgia de mudança de sexo (é esse o nome politicamente correto?) fosse feita gratuitamente com dinheiro público, ou que uma criança pudesse ser educada por dois marmanjos como se eles fossem seu pai e sua mãe. Não me recordo de nenhum general brasileiro alcoólatra, semianalfabeto ou fotografado lendo livros de “cabeça para baixo”. Não havia hospitais com médicos chefiados por enfermeiras, os professores não levavam surras dos alunos, e os policiais não moravam nas mesmas vilas que os traficantes com quem trocavam tiros...

Quando penso em tudo isso tenho plena consciência de que olho para o passado e vejo – até certo ponto – aquilo que gostaria que o presente fosse. Sinto, como a maioria das pessoas, uma saudade infinita da infância, e de um tempo que já não volta mais. Entendo também que muita gente que está agora lendo o que escrevo pode lembrar com muita razão que nem tudo “era um mar de rosas”. Sobre este ponto não há discussão. Além de Deus, nada a meu ver é eterno, mas ainda assim acho que houve uma, talvez apenas uma, perda que foi irreparável: a da nossa capacidade de indignação! Essa não existe mais há muito tempo. Quebrou-se a espinha dorsal do país quando se destruiu, aos poucos e metodicamente, num trabalho começado ainda na década de 1960, o conceito de Nação e a crença sincera num Deus apolítico..., numa força superior e eterna, capaz de ser a fonte do amor gratuito e da caridade tão necessária, a honestidade intelectual e a esperança de um povo.

Desse processo todo nada mais restou além da pobre família brasileira. É ela agora, sozinha, quem tem que fazer também o papel de um Deus e de uma Pátria que há muito foram esquecidos. Dia após dia ela vai sobrevivendo a tudo e a todos – não da caridade de quem a detesta (como cantou Cazuza), mas de quem a ignora. Nos lares mais pobres do Brasil ela ainda é contra a liberação das drogas, faz oposição cerrada ao aborto e ao casamento gay e vê, com olhos de gente simples e desconfiada, esse “tal de aquecimento global”.

Isolada num país moralmente tetraplégico, a família brasileira espera quieta a sua hora chegar, mais ou menos como os personagens de Josué Guimarães – Seu Eleutério e Dona Conceição – sempre vigiados pelo amigo coveiro, sempre lembrando um tempo que já passou. Eternamente esperando...

É o próprio Brasil que espera... enquanto a Noite não Chega...

Para o meu pai.


O autor é médico em Porto Alegre, RS.

 



 


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