Ceitil por
ceitil
Valéria
Amigos.
Trazida ao
recinto por
nossos
Instrutores,
ofereço-vos
alguma coisa de
minha história
obscura. É um
episódio de dor,
porque nascido
da culpa, mas
também de
alegria, por
erguer-se à
redenção.
Observo que a
verdade aqui se
exprime, veloz,
por intermédio
de vossa boca;
no entanto, para
comigo,
externou-se ela,
devagarinho,
pelas amargas
lições da lepra.
Não obstante o
anonimato de meu
berço e a
singeleza de
minha
existência, em
minha última
romagem na Terra
guardava todos
os títulos da
mulher
venturosa. No
entanto, quando
mais me
orgulhava do lar
feliz, coroado
pela presença de
um esposo e
quatro filhos,
cujo amor
supunha
invulnerável,
eis que a
Justiça divina
delegou à
morfeia o poder
de expurgar-me o
coração.
Nunca me
esquecerei do
pavor que vi
desenhar-se no
semblante
daqueles que eu
mais amava,
quando regressei
da cidade ao
campo, com o
diagnóstico
terrível.
O desprezo de
que me vi objeto
doía muito mais
que a própria
enfermidade. Meu
companheiro e
meus filhos,
amedrontados,
desfizeram-se do
sítio
florescente em
que minhas mãos
lhes afagavam a
vida, e fugiram
de mim,
legando-me
apenas
desguarnecida
palhoça, no seio
da mata, onde me
caberia morrer.
Narrar-vos o que
foi meu drama
expiatório, por
mais de dez anos
consecutivos, é
tarefa
impraticável, em
meus recursos de
expressão.
Conheci, de
perto, o
infortúnio e a
necessidade. O
pão esmolado
tinha gosto de
fel. O escárnio
do próximo,
jogado
francamente ao
meu rosto, era
assim como um
relho em brasas,
revolvendo-me as
chagas vivas.
Por agasalho,
possuía o musgo
com que me
socorria a mãe
Natureza e por
únicas
companhias, no
mato agreste,
além dos lobos
que uivavam a
pequena
distância,
encontrava
somente a
formiga e a
varejeira, com o
alívio das
lágrimas e o
reconforto da
oração.
O corpo
apodreceu, pouco
a pouco,
guerreando-me o
egoísmo e
estraçalhando-me
a vaidade. E
quando meus pés,
por excesso de
feridas, se
recusaram ao
movimento,
confiei-me à
inanição.
Suspirar pela
morte no leito
de palha era meu
único sonho,
entre a sede e a
fome, a aflição
e o delírio.
Sofri
pavorosamente,
até que numa
noite de estio,
dessas em que o
orvalho do céu
não consegue
acalmar a secura
escaldante da
terra, perguntei
a Deus, em
pranto mudo,
pela razão dos
estranhos
padecimentos a
que o destino me
precipitara,
indefesa...
Foi, então, que
a febre
descerrou
inesperados
painéis ao meu
olhar. Não podia
saber se o
presente
retornava ao
passado ou se o
passado me
atingia o
presente.
Vi-me,
engrinaldada de
fortuna e
beleza, numa
cidade espanhola
de época
recuada. Nela,
possuía um irmão
consanguíneo
para quem roguei
ao Santo Ofício,
com falsos
testemunhos, a
pena de prisão
incomunicável,
temendo-lhe a
palavra, já que
tivera a
desventura de
conhecer-me os
crimes
inconfessáveis.
Arranquei-o à
esposa e aos
filhinhos,
impus-lhe a
solidão e o
desespero no
calabouço, em
que se demorou,
por muito tempo,
até que
requisitei para
ele o suplício
do fogo, que lhe
foi aplicado,
por fim, na cela
onde
agonizava...
Via-lhe ainda as
vísceras
fumegantes e
escutava-lhe os
gritos
aterradores,
quando me senti
de volta à carne
torturada.
De novo, o
silêncio, a
angústia e a
monotonia...
Experimentara um
pesadelo ou
havia conhecido
a verdade? A
Providência
Divina teria
dado resposta às
minhas súplicas?
Formulava
semelhantes
indagações a mim
mesma, quando
assinalei os
passos de dois
homens que se
aproximavam...
Mantinham
conversação
clara e ativa.
Ouvia-lhes o
diálogo, incapaz
de qualquer
reação.
– Tem visto você
a megera
leprosa? –
indagou um
deles.
– Creio terá
morrido, pelo
cheiro de peste
reinante no ar –
respondeu o
outro.
– Não será
conveniente uma
verificação?
– Não me animo a
enfrentar essa
bruxa, que, a
estas horas, não
passará de um
cadáver.
– Então –
rematou o mais
afoito –,
ajudemo-la para
que os corvos
não lhe espalhem
no campo os
restos
envenenados...
Anotei o ruído
de um fósforo a
inflamar-se ao
compasso de
risos
estridentes.
As chamas
crepitaram
rápidas.
Inutilmente
procurei clamar
por socorro. A
garganta jazia
semimorta e a
boca cerrada não
conseguia nem
mesmo balbuciar
uma prece.
As labaredas
pareciam
serpentes rubras
a me enlaçarem
para a morte.
Como
descrever-vos a
flagelação do
momento final?
Sei apenas que,
por minutos, que
se desdobraram
para mim como
séculos, vi-me
na posição de
tocha viva a
estertorar-se...
Mas, reduzido o
meu corpo a
cinzas, ergui-me
do pó, vestida
em roupa leve e
alva. A gritar
de júbilo, vi
que meu rosto se
reconstituíra,
que minhas mãos
estavam limpas,
que meus cabelos
estavam
intactos... E,
através das
chamas que me
libertavam,
amigos de olhar
brando me
estendiam braços
amorosos, em
ósculos de luz.
Ajoelhei-me,
feliz, e em
lágrimas de
ventura agradeci
a Deus as
úlceras
salvadoras e a
fogueira da
redenção!...
Ah! meus amigos,
a evolução do
Direito
concede-vos hoje
sacerdotes e
juízes
respeitáveis na
galeria dos
povos mais
cultos da Terra.
A Inquisição é
um fantasma no
tempo e o mundo
começa a
acalentar, com
segurança,
preciosos
institutos de
benemerência e
solidariedade
humana, contudo,
abstende-vos do
crime, porque a
culpa é assim
como a jaula a
encarcerar-nos a
consciência, da
qual somente nos
libertamos pela
Bondade
Inexaurível do
Pai Celestial
que, desse ou
daquele modo,
nos concede o
ensejo de saldar
nossos débitos,
ceitil por
ceitil.
Mensagem
psicofônica
transmitida na
noite de
25/8/1955 por
intermédio de
Chico Xavier e
publicada na
obra Vozes do
Grande Além,
ditada por
Espíritos
diversos.