Em carta publicada nesta
mesma edição, a leitora
Luciana, de Maracanaú-CE,
diz-nos o seguinte:
“Sou espírita desde os 12
anos e escolhi a Doutrina
sobretudo pelo aspecto
racional, pela ausência de
ritos e também por não
declarar-se a única forma de
salvação, tão defendida por
outras crenças. No entanto,
estou meio confusa. Li um
texto de uma evangélica onde
esta ataca o Espiritismo com
base em nosso desrespeito e
descrença pela Bíblia (esse
tema não me incomodou, visto
que compreendo perfeitamente
a forma como o Espiritismo
encara o Livro) e ainda pelo
fato de Kardec ter afirmado
no livro Obras Póstumas que
Espiritismo é a única
religião verdadeira. Bom,
isso me incomodou. Fui
procurar em Obras Póstumas a
declaração que ela citou,
crendo firmemente que se
tratava de que ela estava
apenas interpretando
equivocadamente uma
declaração de Kardec. No
entanto, acabo encontrando
esse texto, de orientação
dos espíritos sobre a missão
de Kardec: ‘Aproxima-se a
hora em que, à face do céu e
da Terra, terás de proclamar
que o Espiritismo é a única
tradição verdadeiramente
cristã e a única instituição
verdadeiramente divina e
humana’. Confesso que isso
me afetou sobremaneira, pois
jamais enxerguei o
Espiritismo assim. Sempre o
vi como uma excelente
orientação, uma convicção
sólida, mas jamais como o
único caminho. Isso, aliás,
sempre rejeitei em outras
religiões. Peço que me
ajudem a esclarecer esse
ponto, pois de fato, ele
mexeu comigo.”
A mensagem citada pela
leitora, constante de
Obras Póstumas, foi
recebida em Ségur, no dia 9
de agosto de 1863, mas
não foi publicada por
Kardec.
Só tivemos conhecimento do
seu teor em 1890, quando, 21
anos depois da desencarnação
do Codificador do
Espiritismo, ela veio a
lume, como parte integrante
do livro Obras Póstumas,
que é, como sabemos, uma
coleção de textos e
apontamentos encontrados
entre os papéis deixados por
Kardec e reunidos em forma
de livro.
Por que Kardec jamais a
publicou em vida?
A resposta é simples: a
ideia contida na mensagem é
estranha ao pensamento do
Codificador e à própria
doutrina espírita.
“O Espiritismo – disse
Kardec, dois anos depois da
suposta mensagem – está
longe de haver dito a última
palavra, quanto às suas
consequências, mas é
inamolgável em sua base,
porque esta base está
assentada nos fatos”.
(Revista Espírita de 1865,
pág. 41.)
Além disso, a superioridade
dos ensinamentos do Cristo,
com relação à própria
doutrina espírita, foi
sempre destacada por Kardec,
como podemos comprovar nas
passagens seguintes:
"A moral dos Espíritos
superiores se resume, como a
do Cristo, nesta máxima
evangélica: Fazer aos outros
o que quereríamos que os
outros nos fizessem, ou
seja, fazer o bem e não
fazer o mal." (O Livro
dos Espíritos,
Introdução, item VI.)
"A moral que os Espíritos
ensinam é a do Cristo, pela
razão de que não há outra
melhor." (A Gênese,
cap. 1, item 56.)
"Para os homens,
especialmente, o ensino
moral de Jesus constitui uma
regra de conduta que abrange
todas as circunstâncias da
vida pública ou privada, os
preceitos de todas as
relações sociais baseadas na
mais rigorosa justiça; e é,
enfim, e acima de tudo, o
caminho infalível da
felicidade porvindoura." (O
Evangelho segundo o
Espiritismo, Introdução,
item 1.)
"O que o ensino dos
Espíritos acrescenta à moral
do Cristo é o conhecimento
dos princípios que regem as
relações entre os mortos e
os vivos, princípios que
completam as noções vagas
que se tinham da alma, de
seu passado e seu futuro,
dando por sanção à doutrina
cristã as próprias leis da
natureza." (A Gênese,
cap. 1, item 56.)
Na carta acima reproduzida,
a leitora diz, referindo-se
ao Espiritismo: “Sempre o vi
como uma excelente
orientação, uma convicção
sólida, mas jamais como o
único caminho”.
Pois é exatamente assim que
pensava Kardec. Não existe
em toda a literatura
espírita o lema “Fora do
Espiritismo não há
salvação”, mas sim uma outra
proposta, bastante conhecida
dos espíritas: “Fora da
caridade não há salvação”,
como se pode comprovar à
vista do que Kardec escreveu
e publicou no cap. XV d´O
Evangelho segundo o
Espiritismo, que adiante
transcrevemos:
8. Enquanto a máxima - Fora
da caridade não há salvação
- assenta num princípio
universal e abre a todos os
filhos de Deus acesso à
suprema felicidade, o dogma
- Fora da Igreja, não há
salvação - se estriba, não
na fé fundamental em Deus e
na imortalidade da alma, fé
comum a todas as religiões,
porém numa fé especial, em
dogmas particulares; é
exclusivo e absoluto. Longe
de unir os filhos de Deus,
separa-os; em vez de
incitá-los ao amor de seus
irmãos, alimenta e sanciona
a irritação entre sectários
dos diferentes cultos que
reciprocamente se consideram
malditos na eternidade,
embora sejam parentes e
amigos esses sectários.
Desprezando a grande lei de
igualdade perante o túmulo,
ele os afasta uns dos
outros, até no campo do
repouso. A máxima - Fora da
caridade não há salvação
-consagra o princípio da
igualdade perante Deus e da
liberdade de consciência.
Tendo-a por norma, todos os
homens são irmãos e,
qualquer que seja a maneira
por que adorem o Criador,
eles se estendem as mãos e
oram uns pelos outros. Com o
dogma - Fora da Igreja não
há salvação -
anatematizam-se e se
perseguem reciprocamente,
vivem como inimigos; o pai
não pede pelo filho, nem o
filho pelo pai, nem o amigo
pelo amigo, desde que
mutuamente se consideram
condenados sem remissão. É,
pois, um dogma
essencialmente contrário aos
ensinamentos do Cristo e à
lei evangélica.
9. Fora da verdade não há
salvação equivaleria ao Fora
da Igreja não há salvação e
seria igualmente exclusivo,
porquanto nenhuma seita
existe que não pretenda ter
o privilégio da verdade. Que
homem se pode vangloriar de
a possuir integral, quando o
âmbito dos conhecimentos
incessantemente se alarga e
todos os dias se retificam
as ideias? A verdade
absoluta é patrimônio
unicamente de Espíritos da
categoria mais elevada e a
Humanidade terrena não
poderia pretender possuí-la,
porque não lhe é dado saber
tudo. Ela somente pode
aspirar a uma verdade
relativa e proporcionada ao
seu adiantamento. Se Deus
houvera feito da posse da
verdade absoluta condição
expressa da felicidade
futura, teria proferido uma
sentença de proscrição
geral, ao passo que a
caridade, mesmo na sua mais
ampla acepção, podem todos
praticá-la. O Espiritismo,
de acordo com o Evangelho,
admitindo a salvação para
todos, independente de
qualquer crença,
contanto que a lei de Deus
seja observada, não diz:
Fora do Espiritismo não há
salvação; e, como não
pretende ensinar ainda toda
a verdade, também não diz:
Fora da verdade não há
salvação, pois que esta
máxima separaria em lugar de
unir e perpetuaria os
antagonismos. (O
Evangelho segundo o
Espiritismo, cap. XV,
itens 8 e 9.)
(Grifamos.)
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