JOSÉ LOURENÇO DE
SOUSA NETO
lourencobh@gmail.com
Belo Horizonte,
MG (Brasil)
|
|
Os dois cães
Um homem que era
dono de dois
cães ensinou um
a caçar e fez do
outro seu cão de
guarda. E,
então, cada vez
que o cão de
caça saía a
caçar e trazia
alguma presa, o
dono atirava um
pedaço dela
também para o
outro.
Indignado, o cão
caçador passou a
censurar o cão
de guarda, pois,
enquanto ele
próprio vivia
saindo e se
estafando, o
outro nada fazia
e se deliciava
com os frutos do
esforço alheio.
Então o cão de
guarda lhe
retrucou: “Mas
não faça
críticas a mim,
e sim ao meu
dono! Foi ele
que me ensinou
não a trabalhar,
mas a desfrutar
do trabalho
alheio”. (Os cães. – Esopo)
Podemos nos
apropriar dos
dois cães
metafóricos de
Esopo e ver
neles duas
instâncias de
nossa alma. A
que busca e a
que retém.
Embora lados da
mesma moeda, não
se confundem em
suas ações e
motivações
intrínsecas.
A parte de nós
que caça é
aquela que se
aventura pelo
mundo. Procura
conhecê-lo e
identificar
oportunidades.
Fareja coisas e
situações que
lhe sejam úteis.
Interage com o
ambiente, com as
pessoas, objetos
e
circunstâncias,
e procura obter
para si o que
julga necessário
à sua
subsistência.
O exercício da
caça é perigoso
e requer
técnica. Não é o
simples ver e
colher, mas
implica em,
identificando a
presa, preparar
a tocaia, o bote
e consumação do
ato. Nessa
atividade,
inteligência e
força são
requeridas. A
estratégia deve
ser bem traçada
previamente, e
opções
consideradas,
caso falhe o
primeiro plano.
Em várias
situações o
caçador pode
ferir-se
seriamente,
comprometendo a
própria vida –
especialmente
quando o alvo é
cobiçado por
concorrentes tão
ou mais
preparados.
Caçar é uma
atividade
para fora,
para buscar e
capturar. É
dinâmica e plena
de energia.
Mente e corpo em
atuação
harmônica, para
que a presa não
escape.
A contraparte
que guarda,
volta-se para
dentro e se
preocupa com a
manutenção e o
zelo. Está
interessada em
reter, sem
cuidar de buscar
mais. Não está
atrás de
oportunidades
fora, mas
procura riscos
de vazamento e
perda. Cuida de
possíveis
ladrões, sem
olhos para
presas furtivas.
Não interage –
reage às
ameaças. Não se
estica no espaço
para o bote, mas
encolhe-se na
proteção e no
resguardo.
Tocaia, armando
ratoeiras. Corre
sua dose de
risco, mas de
uma natureza
muito diferente
da do caçador.
O primeiro cão é
ativo; o segundo
é passivo.
O equilíbrio das
coisas exige as
duas
performances.
Parafraseando
Eclesiastes, há
um tempo para
caça, e outro
para preservar o
que se caçou.
Perdemos a
harmonia quando
privilegiamos
qualquer um
desses aspectos
de nossa conduta
além da conta
justa. Se
caçamos demais,
roubamos o meio
em que vivemos.
Açambarcamos o
que não devemos
com o discurso
equivocado do
merecimento –
“fiz por onde!”.
Se o que nos
move é apenas o
prazer da
atividade física
e o sangue da
presa,
passamos a
predadores
nocivos ao meio.
Nossa fome nunca
é saciada,
porque uma presa
abatida é
estímulo para
buscar outra, e
mais outra...
Queremos sempre
mais e nunca
preenchemos esse
oco na boca do
estômago, porque
buscamos fora o
que só podemos
encontrar
dentro.
Mas esse mal
traz consigo seu
próprio remédio.
Como diz a
música popular,
“quem mata o que
não se come, não
perde por
esperar”. Mais
cedo ou mais
tarde nosso
tempo se esgota
e vamos nos dar
conta de que
tanta ação
resultou em nada
de efetivo para
nosso
crescimento
espiritual.
Por outro lado,
se guardamos
demais,
transformamo-nos
em sovinas da
vida. Somos como
o tolo do
Evangelho, que
armazenou para
as traças e os
ladrões, sem
perceber a morte
iminente, que
pode nos
acometer em
qualquer
instante e
lugar. Ficamos
obesos,
preguiçosos e
lentos, pela
excessiva
permanência nas
torres de
vigília. Tememos
tudo e todos,
como ladrões
potenciais das
riquezas que
julgamos
possuir. O menor
gesto do nosso
vizinho é uma
ameaça à nossa
tranquilidade.
Olhamos o mundo
com os olhos
esgazeados da
desconfiança e
do medo. O afã
de reter e
proteger nos
consome. Nossa
vida perde toda
a graça e tudo
se resume ao
zelo com as
posses. E,
assim, não
percebemos
quando passamos
de possuidores a
possuídos –
nossos bens nos
escravizam.
Quando nos
dirigimos para
nosso trabalho,
na busca da
sobrevivência,
que cão late
mais forte
dentro de nós? O
caçador voraz,
que de tudo quer
se apropriar, ou
o vigilante
paranoico, que
vê ameaça nas
menores sombras?
Qualquer um
deles que
prevalecer tem a
capacidade de
tornar nossa
vida um inferno.
Deveríamos
escolher o
caminho do meio,
como já
preconizavam os
antigos sábios.
Caçar na justa
medida da nossa
fome; guardar o
que vale a pena
ser guardado. O
conselho de
Paulo, apóstolo,
é de grande
sabedoria: “Tudo
me é lícito, mas
nem tudo me
convém. Todas as
coisas me são
lícitas, mas não
me deixarei
dominar por
nenhuma” (I Cor,
6:12).
Buscar o que
necessitamos
no mundo é da
lei de
sobrevivência.
Buscar o excesso
corre por nossa
conta e risco.
Guardar o que
realmente nos
aproveita é
medida de
precaução e bom
senso –
previdência.
Armazenar em
excesso engorda
e entorpece o
espírito.
Tanto uma
postura quanto
outra é muito
difícil. Mas
quem disse que
crescer é fácil?
Nossa sociedade
predispõe e
estimula
ferozmente o
consumismo
(caça)
desenfreado. Ao
mesmo tempo, o
clima de
insegurança que
nos envolve, até
por consequência
do muito ter,
torna-nos
demasiadamente
apegados a
coisas e valores
passageiros. Mas
os dois cães
habitam em nós –
somos nós. Qual
dos dois
alimentamos
mais?