Uma despedida
José Gomes
Trazido até aqui
por devotados
benfeitores,
venho
agradecer-vos e
despedir-me.
Há quase dois
anos, fui
socorrido nesta
casa, fazendo-se
luz nas trevas
de minh´alma...
Eu era, então,
um assassino que
por cinquenta
anos padecia no
ergástulo do
remorso. Crendo
preservar a
minha
felicidade,
apunhalei um
amigo, instigado
pela mulher que
eu amava e,
apoiando-me na
desculpa de
legítima defesa,
consegui
absolvição na
justiça
terrestre.
Contudo, que
irrisão! O homem
que eu supunha
haver
aniquilado, mais
vivo que nunca,
prendeu-se-me ao
corpo e, em
poucos meses,
sucumbi devorado
por estranha
moléstia que
escarneceu de
todos os
recursos da
medicina.
Ai de mim! Nas
raias da morte,
apesar do
conforto que me
era oferecido
pela fé, através
de um sacerdote,
não encontrei
para mentalizar
senão o quadro
do homicídio que
perpetrara.
E
à maneira do
homem vitimado
por tormentoso
pesadelo, sem
sair do leito em
que se acolhe à
prostração,
vi-me
encarcerado em
meus próprios
pensamentos,
vivendo a
tortura e o
pavor que
alimentava no
campo da minha
alma...
Sempre o
terrificante
painel a vibrar
na memória!...
Um companheiro
infeliz,
suplicando
indefeso: — «Não
me mate! Não me
mate!... » A
presença da
mulher
querida... Os
gênios do crime
a gargalharem
junto de mim e a
calma impassível
da noite, com a
minha cólera
insopitável a
dessedentar-se
num peito
exangue e
aberto...
Em me cansando
de enterrar a
lâmina na carne
sem resistência,
arrojava-me ao
piso da câmara
iluminada, mas a
onda esmagadora
de sangue
levantava-se do
chão, tingindo
paredes,
afogando móveis,
empapando-me a
vestimenta e,
quando me sentia
semissufocado,
eis que me
erguia de novo
para continuar
no duelo
indefinível.
Se tinha fome,
mãos invisíveis
ofereciam-me
sangue
coagulado; se
tinha sede,
davam-me sangue
para beber...
Era dia? Era
noite? Ignorava.
Somente mais
tarde, quando
amparado pelas
palavras de
esclarecimento e
de amor dos
nossos
benfeitores, por
vosso
intermédio, vim
a saber que o
inimigo se
contentara com o
meu cadáver e
que eu não vivia
senão minha
própria
obsessão,
magnetizado por
minhas ideias
fixas, jungido
ao pó do
sepulcro,
durante meio
século,
recapitulando
quase que
interminavelmente
o meu ato
impensado.
Circunscrito à
alcova fatídica,
que jazia em
minhas
reminiscências,
passei da
extrema cegueira
à desmedida
aflição.
Existiria,
realmente, um
Deus de paz e
bondade? Bastou
essa pergunta
para que réstias
de luz se
fizessem sentir
em meu Espírito
entenebrecido,
como relâmpago
em noite de
espessa treva...
No entanto, para
chegar à certeza
de Deus,
precisava de um
caminho. Esse
caminho era ela,
a mulher amada.
Queria vê-la,
ouvi-la,
tocá-la...
E
tanto clamei por
isso que, em
certa ocasião,
senti como que
uma rajada de
vento forte,
arrebatando-me
para o seio da
noite...
Carregava comigo
aquele fatal
aposento,
contudo podia
agora respirar a
brisa
refrescante,
entre as sombras
noturnas que
filtravam, de
leve, as
irradiações da
lua nova.
Mais ágil, andei
apressadamente...
Onde estaria
ela, a mulher
que estava em
mim?
Favorecia-me o
sopro do vento
e, a minutos
breves, alcancei
pequeno jardim,
vendo-a sentada
com uma criança
ao colo...
Ah! somente
aqueles que
sentiram na vida
uma profunda e
irremediável
saudade poderão
compreender o
alarme de meu
Espírito naquela
hora de
reencontro!...
Mas, assim que
me percebeu,
conchegou a
criança ao
coração e fugiu,
espavorida... Eu
devia ser aos
seus olhos um
fantasma
repelente a
regressar do
túmulo!
Persegui-a,
porém, até que a
vi penetrando um
quarto
humilde...
Observei-a,
ajustando-se ao
corpo de carne,
tal qual a mão
em se colando à
luva... Entendi,
sem palavras, a
nova situação.
Enlaçada a um
homem que lhe
partilhava o
leito,
reconheci, sem
explicações
verbais, que o
filhinho
nascituro era
meu velho rival
e que o homem
desconhecido
era-lhe agora o
esposo, outro
adversário que
me cabia vencer.
O
ódio passou a
estourar-me o
crânio. O cheiro
acre e
fedentinoso de
sangue novamente
me ensandeceu.
Beijei-a,
delirando em
transportes de
amor não
correspondido, e
consegui
instilar-lhe
aversão pelo
marido e pelo
filho
recém-nato.
Queria
matá-la...
desejava que ela
vivesse
novamente para
mim... pretendia
sugar-lhe os
eflúvios do
coração...
E, durante
muitos dias,
permaneci
naquela casa,
desvairado e
irresponsável,
envenenando a
própria
medicação que
lhe era
administrada...
Consegui
dominá-la até o
dia em que foi
conduzida a um
círculo de
orações... E,
nesse círculo,
vossos amigos me
encontraram...
Encontraram-me e
trouxeram-me a
esta casa...
Com os
ensinamentos que
me dirigiram, a
câmara do crime
desapareceu de
minha
imaginação...
Todas as ideias
estagnadas que
me limitavam o
pensamento, qual
se eu fora o
próprio remorso
num casulo
infernal,
desfizeram-se,
de pronto, como
escamas de lodo
que, em se
desintegrando,
me libertaram o
Espírito...
Desde então, fui
admitido em uma
escola...
Transcorridos
seis meses,
tornei ao lar
que eu me
propunha
destruir,
transformado
pelas lições dos
instrutores que
vos orientam o
santuário. Novos
sentimentos me
vibravam no
coração.
Compadeci-me
daquela que
sofria tanto e
que tanto se
esforçava por
reabilitar-se
perante a Lei!
Contemplei-lhe o
filhinho e o
esposo, tomado
de viva
compaixão...
Achava-me
renovado...
Compreendi então
convosco que o
coração humano —
concha divina —
pode guardar
consigo todos os
amores...
Observei a
extensão de
minhas faltas e
voltarei à carne
em dias breves!
Aquela por quem
me perdi
ser-me-á
devotada mãe...
Terei um pai
humilde,
generoso e
trabalhador,
abençoando-me o
restabelecimento
moral, e, em meu
irmão, já
renascido,
encontrarei não
mais o
antagonista, mas
o companheiro de
provação com
quem restaurarei
o destino...
Ante o coração
que me estimula
a esperança, não
mais direi: —
«mulher que eu
desejo»! e sim
«mãezinha
querida!
Nossos
sentimentos
pairarão em
esfera mais alta
e de seus lábios
aprenderei, de
novo, as
sublimes
palavras: — «Pai
Nosso, que estás
no Céu...»
Fitar-lhe-ei nos
olhos o celeste
horizonte e,
trabalhando,
enxergarei feliz
a senda
libertadora...
Ah!...
entendereis
comigo
semelhante
ventura? Creio
que sim.
Partirei, desse
modo, não para a
companhia dos
anjos, mas para
o convívio dos
homens,
refazendo meu
próprio caminho
e regenerando a
própria
consciência.
E, abraçando-vos
com afetuosa
gratidão, saúdo
em Nosso Senhor
Jesus-Cristo a
fé que nos
reúne!...
Terra —
abençoado mar de
lutas...
Carne — navio da
salvação!
Lar — templo de
luz e
trabalho...
Mãe — santuário
de amor!...
Meus amigos, até
amanhã! Bendito
seja Deus.
Mensagem
transmitida
psicofonicamente
por intermédio
de Chico Xavier,
na noite de 10
de março de
1955, inserida
no cap. 52 do
livro
Instruções
Psicofônicas.