MILTON SIMON
PIRES
cardiopires@gmail.com
Porto Alegre, RS
(Brasil)
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Justiça e saúde
pública – tempo
de humildade
Quando escrevi
De Alma-Ata
ao Mais Médicos
– A Trajetória
do SUS,
mostrei que o
conceito de
saúde atualmente
em vigor no
mundo ocidental
tem origem comum
com o movimento
revolucionário.
Procurei provar
que a
preocupação com
o tema antecedia
até mesmo à
publicação do
Manifesto do
Partido
Comunista
feita em 1848 e
que a partir da
Conferência
Mundial de Saúde
de 1978, na
antiga URSS,
surgiram as
bases que mais
tarde deram
origem ao SUS no
Brasil.
O objetivo do
artigo de hoje é
diferente.
Buscaremos
descobrir quais
os campos do
conhecimento e
qual o
“armamento
teórico”
necessários para
fazer a crítica
imparcial do
modelo de saúde
marxista
implantado no
nosso país.
Inicialmente, de
maneira
dramática e
provocativa,
quero afirmar o
seguinte: só
acredito numa
discussão séria
sobre a saúde
pública quando
não estiverem
envolvidos os
seus atores. Em
outras palavras
– nada de
médicos,
enfermeiras,
psicólogos, ou
“outros
profissionais da
saúde” falando e
escrevendo sobre
o assunto. Mais
desconforto
ainda me
causaria a
opinião dos
pacientes e dos
gestores –
partes
conflitantes que
absolutamente
nada têm a
acrescentar ao
debate.
Por que fiz essa
afirmação? Qual
a base teórica
para sustentar
tamanha
discriminação?
Respondo da
seguinte
maneira: muito
antes dos
aspectos
técnicos,
econômicos ou
administrativos,
é no terreno da
filosofia, da
história e da
moral que o
verdadeiro
debate deve
travar-se.
Afirmo, de modo
contundente, que
ao falarmos em
“saúde pública”
escondemos no
conceito a ideia
de “justiça
social”. Provo o
que digo da
seguinte maneira
– quando nada
mais resta a um
gestor, médico,
paciente ou
enfermeira
apresentar do
ponto de vista
técnico no
sentido de
defender o
sistema, o
discurso pode
rapidamente ser
mudado e entrar
num campo em que
a argumentação,
muito mais do
que científica,
assume um
caráter
passional. Basta
a qualquer um
desses
profissionais
perguntar ao seu
opositor o
seguinte -
“Aceitando que
tu tenhas razão,
o que sugeres
fazer para que
as pessoas mais
pobres não sejam
deixadas à
margem do
atendimento?
Propões que
agonizem e
morram como
animais sem
direito a coisa
alguma?”
Vejam: não há –
na minha opinião
– prova maior do
que essa no
sentido de
mostrar que a
verdadeira
discussão deve
ser não no
sentido de como
o SUS deva
funcionar; mas
se ele deve ou
não existir!
Se não for feito
um debate de
natureza
histórica e
filosófica que
contemple, com
uma razão livre,
as obrigações do
estado com
relação ao
cidadão e a
definição de
justiça, jamais
se poderá falar
seriamente sobre
saúde pública.
Cada vez que um
médico,
enfermeira,
psicólogo ou
administrador se
opõem ao SUS com
argumentos
técnicos, o que
se tem é algo
semelhante à
entrada de uma
mulher de 50
quilos num
ringue em que
vai enfrentar um
lutador de boxe
peso-pesado.
Explica-se isso
pelo fato de
sabermos que
toda
argumentação tem
dois
componentes: um
racional e outro
emotivo. Quem
defende o SUS o
faz através de
um discurso em
que o que não é
dito é o mais
importante. É o
apelo passional
por uma saúde
para todos...,
por uma
“medicina
transformadora”
que supera de
longe qualquer
argumento
contrário e que
transforma o
opositor em
alguém “sem
coração e que
quer mais é que
os pobres
morram”.
Não preciso
dizer o quão
insignificante é
a formação de um
médico
brasileiro no
campo das
ciências
humanas. Médicos
pouco ou nada
sabem de
filosofia e não
têm a mínima
condição de
entrar num
debate sério
sobre “justiça
social” (seja lá
qual for o
significado
dessa expressão)
ou Teoria Geral
do Estado.
Apoiados sempre
num discurso
técnico e
fundamentado
numa ética que
praticamente se
limita à
deontologia, nós
não temos – de
modo geral – a
mínima condição
de enfrentar um
opositor munido
de uma
cosmovisão...,
de um sonho em
que é possível,
conhecendo e
dominando as
leis da
história, fazer
com que o Reino
de Deus seja
construído aqui
mesmo nessa
Terra e nesse
tempo.
Irônico, nesse
processo todo, é
lembrar-se que
Medicina e
Filosofia
nasceram
praticamente
juntas e
perceber que
quem primeiro
salvou uma vida
o fez em nome de
uma verdade
transcendente e
muito mais
importante que
os conceitos de
Estado ou de
Lei. Muito
interessante
seria buscar na
história o
momento em que
essa ligação
rompeu-se, pois
talvez daí
pudessem ser
recuperadas as
bases
humanísticas que
fizeram da
profissão médica
algo muito maior
que qualquer
sonho
totalitário.
Necessário é
dizer também que
não se pode
esperar dos
médicos e demais
profissionais da
saúde a
construção de um
arsenal teórico
capaz de
enfrentar o
discurso
marxista
aplicado à saúde
pública. Esse
instrumental é
escasso mesmo
dentro das
Universidades e
sua falta faz-se
sentir nas aulas
das faculdades
de Direito,
História e
Filosofia, muito
antes da
implantação de
cadeiras como
“socioantropologia
da saúde” ou
“relação
médico-paciente”
nos cursos de
Medicina.
Vítimas da
chamada “guerra
assimétrica”,
nós médicos
continuamos
errando ao
debater saúde
pública com um
governo que –
muito mais do
que acesso a
verbas e poder –
é portador de um
sonho, de uma fé
que segue sendo
“vendida à
população” em
cada consulta de
ambulatório, em
cada exame
solicitado.
Talvez nós,
médicos
brasileiros,
devêssemos
buscar socorro
naqueles que
realmente podem
nos ajudar:
historiadores e
filósofos
brasileiros
livres de
quaisquer
fanatismos e,
portanto,
capazes de
discutir a
questão do
acesso universal
à saúde com
argumentos –
esses sim – à
altura da
pseudointelectualidade
e dos médicos
que ajudaram a
construir o SUS.
Só assim há de
chegar uma nova
época em que
não nos
sentiremos
culpados pela
pobreza e
sofrimento no
Brasil mas
também não
seremos tolos a
ponto de nos
orgulharmos de
“contribuir para
sua redução.” A
Medicina voltará
a ser feita para
os doentes; não
para os
políticos. Isso
vai vir com um
novo tempo –
Tempo de
Humildade.
Dedicado ao
Professor Olavo
Luiz Pimentel de
Carvalho
O autor é médico
em Porto Alegre,
RS.