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Crônicas e Artigos

Ano 8 - N° 371 - 13 de Julho de 2014

MARCUS VINICIUS DE AZEVEDO BRAGA
acervobraga@gmail.com

Rio de Janeiro, RJ (Brasil) 

 
 
 

Com Kardec eu aprendi 


Com a devida permissão do leitor para me utilizar de uma experiência pessoal, lembro-me dos tempos da juventude, passados quase 25 anos, quando me tornei espírita e frequentava o GECON-Grupo Espírita do Colégio Naval, núcleo religioso que funcionava na escola militar à qual eu pertencia, na aprazível cidade de Angra dos Reis-RJ, nos idos de 1990, e que até hoje atende aqueles jovens em regime de internato.

Nesse grupo, formado de adolescentes estudiosos e disciplinados, a nossa breve reunião ocorria de 17h às 17h50, alterando-se entre terças com o estudo de “O Livro dos Espíritos” e nas quintas com o Estudo de “O Evangelho segundo o Espiritismo”. Aprendi muito naqueles crepúsculos de discussão se abeirando nas obras básicas. Aprendi e aprendemos todos, amadurecendo nesse processo de interação mútua, de hora marcada, que às vezes se espraiava por discussões na hora do almoço.

Dessa experiência inicial, que compartilhei em outros grupos de outras casas espíritas de maneira similar, colhi duas percepções que trago comigo e que penso serem úteis se trazidas à reflexão, em especial no contexto atual do movimento espírita e a sua relação com o estudo doutrinário e temáticas correlatas.

Primeiro, tem-se a importância de se prestigiar o estudo das obras da codificação kardequiana, as chamadas obras básicas. Isso se deve à necessidade de entender uma doutrina pelas suas bases, pelo seu fundamento, entendendo as origens, da mesma forma que, em qualquer área do conhecimento humano, estudamos seus autores clássicos e a sua história.

Além disso, as questões postas por Kardec, sua metodologia, os problemas por ele enfrentados encontram-se atuais. Às vezes assistimos a programas de televisão com estudos de reencarnação, sobre a vida após a morte e aquele batalhão de céticos e, quando vemos, está tudo ali nas obras básicas, as ponderações, as argumentações no bom senso que tornaram o mestre lionês tão peculiar.

Não se trata de ortodoxia ou bitolação, mas falamos de um contexto de grande profusão de editoras e obras espíritas, de supervalorização de textos psicografados e ainda, de buscas pelas novidades literárias, por vezes com interesses mercadológicos, em uma selva louca e desvairada (parafraseando Vinicius de Moraes) na qual necessitamos de faróis seguros a nos guiarem e, em termos de metodologia e coerência, estou para ver coisa melhor que o Professor Rivail.

Isso não invalida as obras monumentais que temos à disposição, como os estudos e reflexões de autores encarnados do naipe de Hermínio Miranda, Herculano Pires e Richard Simonetti, somente para ilustrar, além daqueles clássicos da psicografia, nas obras pela pena de Divaldo Franco e Chico Xavier, entre outras. Obras essas que trouxeram reflexões e acrescentaram, sim, à construção da doutrina espírita um tijolinho, dado o seu caráter dinâmico, valorizado, inclusive por Allan Kardec.

Entretanto, penso que a casa espírita deve, nas suas preleções e grupos de estudos, valorizar as obras básicas, não por uma sacralização, mas pelo seu valor basilar, pela sua completude, coerência e metodologia, como forma de autonomia dos espíritas, que os habilitem a trafegar pelos inevitáveis mares no campo do conhecimento transcendente e que andam por aí.

A segunda colheita dessa experiência juvenil é que a abordagem do estudo espírita deve, na minha humilde opinião, valorizar o contato com as obras. Devemos utilizar a “Pedagogia do manuseio”, na qual os estudantes devem se abeirar do texto da obra, buscando a discussão em grupo, inclusive como o próprio Kardec fazia com mensagens trazidas de Espíritos. O coletivo traz sinergia, na máxima de um mais um é sempre mais que dois.

Observo alguns cursos superiores que abandonam os livros e passam a atuar com apostilas; alguns, meras cópias de lâminas exibidas nas aulas por professores polivalentes. Essa visão resumitiva, de tópicos, conteudista, é empobrecedora, favorece pouco a reflexão, em uma visão “pasteurizada” da prática educativa. No movimento espírita não ficamos livres dessa cultura apostilada, que por vezes favorece a “formatação” e esquece a reflexão.

É verdade, o pessoal gosta, em geral, de coisas mais facilitadas e a linguagem das obras básicas, por vezes, é complexa, por ser um texto antigo. Nesse sentido, têm surgido esforços de traduções mais contemporâneas, com notinhas explicativas, mas há de se considerar que uma boa discussão em grupo fortalece o aprendizado pela pesquisa e pelas dúvidas, tornando límpido o complexo.

Penso que devemos caminhar para um movimento que enxugue as palestras na grade da casa espírita e que se fortaleçam os estudos em grupo, que, de forma autônoma, favorecem a síntese e a discussão, gerando um conhecimento robusto e firme.  A palestra chama as pessoas, mas o grupo as retém. A palestra é um mecanismo passivo enquanto grupo é interativo, de construção do saber, potencializado, se realizado à luz de uma obra relevante. No grupo de estudos é que forjamos o conhecimento espírita sólido.

O grupo de estudo exige esforço das pessoas, convoca à leitura, a falar, se expressar e se posicionar. Formam-se amigos, é democrático como espaço de participação e de revezamento da condução. Apresenta-se como modelo de estudo de excelência, antenado com as modernas tendências pedagógicas.

Por fim, insta considerar que valorizar Kardec não é só citá-lo em palestras ou artigos, por vezes com a inserção de trechos de seus livros sem contextualização. Trata-se de estudar a sua obra, entendê-la e transpô-la para nossos problemas atuais, enriquecida, obviamente, pelo que de bom surgir; se é espírita pelas ideias, pelos fundamentos, e não por um selo nominal.

A quantidade de obras é imensa, mas tudo começou lá na França, passados mais de 150 anos, e aqueles pressupostos, límpidos e razoáveis, ainda aplacam nossos anseios pelos problemas do ser, do destino e da dor. Não defendo a fossilização, saudando as produções vindouras, algumas basilares, mas devemos ter em mente a importância da obra de Kardec em nosso movimento.

Da mesma forma, reputo que esses estudos devem se fundamentar no manuseio de obras, enxergando naquelas linhas potencial de expansão de ideias que podem ser agregadas pela pesquisa em outras obras e pela opinião dos próprios integrantes do grupo. A doutrina não sobreviveu e se fortaleceu esses anos por ter criado uma bula proibitiva de conhecimentos, pela busca da padronização de ideias, e sim pela valorização do bom senso de discussão, fortalecendo seus adeptos, diante da razão em todas as épocas da humanidade. 

À feição de antiga música do movimento espírita carioca, importa lembrarmos que “com Kardec eu aprendi que a vida não termina aqui”... E, daí, surgiu tudo isso de belo e consolador que vivenciamos hoje, que impulsiona vidas, ideais, trabalhos e modificações.



 
 


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O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita