Espíritas falidos
A figueira que secou é o símbolo dos que apenas
aparentam propensão para o bem
“(...) Todo aquele, pois, que escuta estas minhas palavras e as pratica,
será comparado a um homem prudente que edificou a sua
casa sobre a rocha..." - Jesus. (Mt., 7:24.)
A “Parábola das dez virgens” ratifica a questão da prudência que leva a criatura a estar permanentemente preparada, em “vigilância e oração”, conforme a importantíssima recomendação de Jesus, para as vertiginosas mudanças que ocorrem, em especial, por ocasião da desencarnação.
A maioria dos encarnados nos assemelhamos às cinco virgens loucas da parábola: passamos todo o tempo da encarnação toscanejando e dormindo... Quando a desencarnação chega, de inopino, encontramo-nos totalmente despreparados para ela.
Perdidos em estado de semidemência, vagamos pelo Mundo Espiritual batendo às portas que não se nos abrem, dizendo: “Senhor, Senhor, abre-nos!”
E Ele, respondendo, diz: “Em verdade vos digo que não vos conheço”.
Surpresos com a indiferença do Senhor para conosco (que nos julgávamos um de Seus trabalhadores), ainda retrucamos: “Senhor! Senhor! Não profetizamos em teu nome? Não doutrinamos os Espíritos obsessores? Não aplicamos passes e fizemos inúmeras conferências exaltando o teu Evangelho de Luz?...”
O Senhor, então, nos responderá: “afastai-vos de mim, vós que fazeis obras de iniquidade! Vós que semeastes a cizânia; que malversastes os talentos que vos foram dados para a edificação de Meu Reino na Terra; vós que, ao invés de unir-vos em um feixe de varas aos vossos irmãos de lutas e de ideal para vos fortalecerdes, os agredistes com o azorrague da impiedade e da intolerância, em torneios verbais improdutivos; vós que vos iludistes com os falsos pruridos do autoritarismo; vós que cerceastes os trabalhos de iluminação das mentes e impusestes travos de dores aos corações animosos estorvando-lhes os passos!...”.
André Luiz reporta-se às histórias de Belarmino Ferreira e Monteiro, dois doutrinadores falidos, que embora tendo ambos dedicado largo tempo de suas encarnações ao trabalho espírita, passaram maus momentos no Mundo Maior, após as respectivas desencarnações.
Emaranhado em excessivo apego à posição de comando do barco doutrinário, Belarmino desviou a direção dos trabalhos para a arena enganosa dos interesses materiais, substituindo a doçura do Evangelho pela frieza dos preceitos científicos das provas insofismáveis, na busca dos inconfessáveis interesses de ordem material. Pretendeu fazer, dos Espíritos, degraus para a conquista das mordomias terrestres. Como não lograsse o desiderato, desanimado com a falta dos resultados ambicionados junto aos Espíritos, transferiu-se para a politicagem mundana, acabando seus dias com uma bela situação financeira no mundo e um corpo crivado de enfermidades; com um palácio confortável de pedra e um deserto no coração.
Já Monteiro, talhando o Espiritismo a seu modo, possuindo mais raciocínios na cabeça do que sentimentos no coração, com as tarefas de doutrinação instalara enorme entusiasmo em seu Espírito, especializando-se, sobretudo no atendimento aos obsessores de variegado matiz.
Explica André Luiz: “sob seu controle direto, Monteiro tinha alguns médiuns de efeitos físicos, além de outros dedicados à psicografia e à incorporação; e tamanho era o fascínio que o comércio com o invisível exercia sobre ele, que se distraiu completamente quanto à essência moral da Doutrina Espírita. Frequentava quatro reuniões semanais, às quais comparecia com assiduidade absoluta. Tinha sempre longas exortações decoradas na ponta da língua. Aos sofredores, fazia ver que padeciam por culpa própria. Aos embusteiros, recomendava, enfaticamente, a abstenção da mentira criminosa. Arremetia-se aos casos de obsessão com apaixonado ardor. Estimava enfrentar obsessores cruéis para reduzi-los a zero, no campo da argumentação pesada. Outra característica que lhe assinalava a ação firme era a dominação que pretendia exercer sobre alguns pobres sacerdotes católicos romanos desencarnados, em situação de ignorância das Verdades divinas. Chegava ao cúmulo de estudar, pacientemente, longos trechos das Escrituras, não para meditá-los com o entendimento, mas por mastigá-los a seu bel-prazer, bolçando-os depois aos Espíritos perturbados, em plena sessão, com a ideia criminosa de falsa superioridade espiritual. O apego às manifestações exteriores desorientou-o completamente. Acendia luzes para os outros, preferindo, porém, os caminhos escuros e esquecendo a si mesmo.
Por vezes, após longa doutrinação sobre a paciência, impondo pesadíssimas obrigações aos desencarnados, abria as janelas do grupo de suas atividades, para descompor as crianças que brincavam inocentemente na rua. Concitava os perturbados invisíveis a conservarem serenidade para daí a instantes, repreender senhores humildes, presentes à reunião, quando não podiam conter o pranto de algum pequenino enfermo. Isso, quanto a coisas mínimas, porque, no seu estabelecimento comercial, suas atitudes eram inflexíveis. Raro o mês que não mandasse promissórias a protesto público. Não se demovia aos rogos súplices de alguns varejistas para dilação dos prazos dos débitos e os seus advogados já lhe conheciam as implacáveis deliberações. Passava os dias no escritório estudando a melhor maneira de perseguir os clientes em atraso, entre preocupações e observações nem sempre muito retas e, à noite, ia ensinar o amor aos semelhantes, a paciência e a doçura, exaltando o sofrimento e a luta como estradas benditas de preparação para Deus. Andava cego. Não conseguia perceber que a existência terrestre, por si só, é uma sessão permanente.
De desvio em desvio a angina encontrou-o absolutamente distraído da realidade essencial. Passou para o Mundo Maior qual demente necessitado de hospício. Tarde reconheceu que abusara das sublimes faculdades do verbo. Como ensinar sem exemplo, dirigir sem amor? Entidades perigosas e revoltadas aguardaram-no à saída do plano físico. Mesmo nessa situação dolorosa, seu raciocínio pedia socorro divino, mas seu sentimento agarrava-se a objetivos inferiores; a cabeça dirigia-se em súplicas ao Céu, mas o coração colava-se à Terra. Rodearam-no, então, seres malévolos que lhe repetiam longas frases que ele mesmo arengava nas reuniões mediúnicas na direção dos obsessores. Com atitude irônica, recomendavam-lhe serenidade, paciência e perdão às alheias faltas; e perguntavam-lhe por que não se desgarrava do mundo, estando já desencarnado...
Monteiro vociferava, rogava, gritava, mas teve que suportar esse tormento por muito tempo. Mesmo depois que foi socorrido pela Misericórdia Divina, o infeliz ainda estava revoltado, descontente, indignado... Não havia fomentado as sessões de intercâmbio entre os dois planos? Não se consagrara ao esclarecimento dos desencarnados?
Após os tratamentos iniciais, como permanecesse a revolta, Monteiro solicitou uma audiência com a Ministra Veneranda. Queria explicações que pudessem atender ao seu capricho individual. Na presença da Ministra, chorou amargamente, crivando-lhe os ouvidos com suas descabidas lamentações. Em silêncio expressivo, a Ministra, por um prodígio de paciência, escutou-o por duas horas, deixando que se cansasse na exposição longa e inútil. Quando se calou, à espera de palavras que alimentassem o monstro de sua incompreensão, Veneranda sorriu e respondeu com gentileza e sabedoria: “Monteiro, meu amigo, a causa de sua derrota não é complexa, nem difícil de explicar. Entregou-se você excessivamente ao Espiritismo prático, junto dos homens, nossos irmãos, mas nunca se interessou pela verdadeira prática do Espiritismo junto de Jesus, nosso Mestre”.
Livro divino, o Evangelho não nos expõe seus tesouros sagrados enquanto permanecemos na cegueira da vaidade e da ignorância. Da mesma maneira, os Espíritos Superiores não se submetem ao talante dos ambiciosos e parvos.
O equívoco não é apanágio tão somente dos doutrinadores, mas também de muitos outros trabalhadores da Seara Espírita que se enviscam na vaidade, olvidados da assertiva de João, o Batista, que disse que nós temos que nos apequenar para que Jesus cresça. E pelo número de “trabalhadores” que exigem tapetes vermelhos para o desfile da vaidade e se entregam ao culto do personalismo dissolvente, as reuniões mediúnicas em futuro próximo terão farta clientela de sofredores revoltados e perplexos...
Recentemente chegou-nos do Mundo Espiritual a informação de que um confrade muito dedicado à tribuna espírita, com a sua agenda sempre repleta de compromissos, enfrentava triste realidade no Lado de Lá: vitimado por morte súbita e inesperada, ainda em idade produtiva, ficou por mais de um ano vagando pelo Mundo Espiritual, sem rumo, desorientado, perplexo e inconformado com a própria desencarnação. Não se resignava por ter desencarnado mais cedo do que esperava e muito menos com a maneira que a ‘morte’ se deu... Cabeça cheia de raciocínio, coração vazio de sentimento e mãos sem obras oferecem passaporte para superlativas agonias e desaires post mortem. Conhecendo estes fatos podemos compreender melhor por que Jesus afirmou: “o servo que souber da vontade do seu amo e que, entretanto, não estiver pronto e não fizer o que dele queira o amo, será rudemente castigado. Muito se pedirá àquele a quem muito se houver dado e maiores contas serão tomadas àquele a quem mais coisas se haja confiado”.
Escrevendo aos coríntios e aos efésios, Paulo recomendava que se purificassem do velho fermento para transformarem-se em nova massa, conclamando-os a se coedificarem em Cristo, transformando seus Espíritos em uma habitação de Deus. Só assim poderemos reconhecer em nós próprios a ‘morada divina’ cujos alicerces são erguidos com o cimento das verdades imarcescíveis no interior da qual reina o Amor que salva, educa e transporta-nos dos vales sombrios da ignorância para os cimos alcandorados dos Céus Infinitos.
O ínclito Codificador do Espiritismo traduz de maneira clara e insofismável o sentido da ‘Parábola da figueira que secou’, que na verdade sintetiza de forma magistral todos os fatos que acabamos de narrar: “a figueira que secou é o símbolo dos que apenas aparentam propensão para o bem, mas que, em realidade, nada de bom produzem; dos oradores que mais brilho têm do que solidez, cujas palavras trazem superficial verniz, de sorte que agradam aos ouvidos, sem que, entretanto, revelem, quando perscrutadas, algo de substancial para os corações. Simboliza também todos aqueles que, tendo meios de ser úteis, não o são. São árvores cobertas de folhas, porém, baldas de frutos. Por isso é que Jesus as condena à esterilidade, porquanto dia virá em que se acharão secas até a raiz. Quer dizer que todas as criaturas deliberadamente inúteis, por não terem posto em ação os recursos que traziam consigo, serão tratadas como a figueira que secou.
Nos tempos atuais, de renovação social, cabe aos médiuns uma missão especialíssima: são árvores destinadas a fornecer alimento espiritual a seus irmãos; multiplicam-se em número, para que abunde o alimento; há-os por toda a parte, em todos os países em todas as classes da sociedade, entre os ricos e os pobres, entre os grandes e os pequenos, a fim de que em nenhum ponto faltem e a fim de ficar demonstrado aos homens que todos são chamados. Se, porém, eles desviam do objetivo providencial a preciosa faculdade que lhes foi concedida, se a empregam em coisas fúteis ou prejudiciais, se a põem a serviço dos interesses mundanos, se em vez de frutos sazonados dão maus frutos e se recusam a utilizá-la em benefício dos outros, se nenhum proveito tiram dela para si mesmos, melhorando-se, são quais a figueira estéril. Deus lhes retirará um dom que se tornou inútil neles: a semente que não sabem fazer que frutifique, e consentirá que se tornem presas dos Espíritos maus”.
- KARDEC, Allan. O Evangelho seg. o Espiritismo. 125. ed. Rio: FEB, 2006, cap. XIX, itens 9 e 10.