Aflitiva lição
Josefina
Conduzida por
enfermeiros
amigos para um
leito de
reencarnação, à
maneira de
mísera doente
para uma cela de
hospital,
recomendam eles
vos fale alguma
coisa de minha
angústia.
Entretanto, a
boca humana foi
feita para
assuntos humanos
e, para
narrar-vos o meu
infortúnio
terrível, seria
preciso que o
pranto, o fogo e
o sangue
tivessem uma
voz...
Sou mãe
criminosa,
embora não
chegasse a ser
mulher
pervertida.
Jovem ainda, mas
abandonada pelo
homem que me
traíra a
confiança, não
tive coragem de
enfrentar a
maternidade
chamada ilegal
diante dos
homens.
Envergonhada de
mim mesma e
olvidando o brio
que toda
consciência deve
cultivar diante
da Lei de Deus,
esperei o
rebento de minha
carne entre o
ódio e a
desconfiança,
sentindo que
labaredas de
sofrimento me
requeimavam a
carne,
retesando-me o
ser.
Soube guardar o
meu segredo...
Esperei o
momento azado e,
a sós comigo,
quando a criança
vagia no
silêncio da
noite, com as
minhas próprias
mãos asfixiei-a,
tomada de frieza
satânica.
Ergui-me do
leito, não
obstante
enfraquecida, e
consegui-lhe um
túmulo
improvisado,
mas, em voltando
aos lençóis que
me resguardavam,
o sangue
borbotou-me em
ondas
insopitáveis,
até que um sono
pesado me tomou
a cabeça,
perdendo-se-me o
raciocínio.
Não posso
precisar quanto
tempo gastei,
entregue a
semelhante
torpor, contudo,
lembro-me
perfeitamente do
horrível
instante em que
despertei,
amolentada,
experimentando o
assédio de
vibriões
assassinos.
Achava-me,
disforme, num
leito estranho,
pleno de sombra,
enregelada,
visitada por
vermes
asquerosos...
Agitei minhas
mãos, tateei o
meu corpo e
notei que o
sangue
continuava a
fluir do baixo
ventre. Sangue
pestilencial,
sangue podre...
Reergui-me
horrorizada.
Caminhei
vacilante. Pisei
detritos de
carne, cujo
fétido odor me
impunha náuseas
incoercíveis.
Consegui ensaiar
alguns passos e
vi-me no
cemitério.
Gritei,
aloucada, pelo
socorro de meus
parentes. Vermes
famintos
atacavam-me,
vigorosos.
Clamei por
auxílio, até que
uma voz
igualmente
chorosa me
respondeu.
Aproximou-se
alguém de mim.
Era outra
mulher. Aos meus
olhos, trazia
uma criança nos
braços. Diante
dela, passei a
ouvir os gemidos
de meu filhinho
assassinado.
Pusemo-nos ambas
a gritar
estentoricamente.
Entrelaçamo-nos
uma à outra.
Abandonamos o
sítio infeliz,
para encontrar
uma terceira
mulher, não
muito longe, que
clamava também
por socorro.
Depois de mais
alguns passos,
encontramos uma
quarta
companheira e,
pelas ruas
afora, dentro da
noite, na cidade
dormente, outras
mulheres se
juntaram a nós.
Umas exibiam
sinais
arroxeados dos
golpes que lhes
haviam sido
vibrados no
seio, outras
mostravam chagas
abertas no colo
exposto, outras
traziam, como
eu, o próprio
ventre aberto...
Algumas
ziguezagueavam
no solo,
rastejantes,
outras tinham
acessos de
fúria,
histéricas,
indominadas,
enlouquecidas e,
de quando em
quando, outras
bailavam,
gargalhavam,
gemiam,
estertoravam,
até que,
formando extensa
nuvem de loucura
e de pranto, nos
movemos tocadas
por faunos
desnudos, que
mais se
assemelhavam a
demônios
egressos de
pavorosas
regiões
infernais.
Tentei
desvencilhar-me
de semelhante
companhia, mas
achava-me
imantada àquele
triste grupo,
como se
correntes
férreas a ele me
retivessem.
Tangidas quais
se fôssemos
varas de bestas,
em gritos de
pavor e
requebros de
demência, fomos
apresadas numa
casa de
meretrício em
que o álcool e o
entorpecente
surgiam a
jorros... E a
estranha legião
começou a
gargalhar e
bailar. Cenas
que vozes
humanas, com
todo o patético
do mundo, seriam
incapazes de
definir,
projetaram-se
aos nossos
olhos...
Implorei a
bênção do Céu.
Roguei proteção
à Mãe
Santíssima, para
que se
compadecesse de
mim, enviando-me
leve gota dágua
ao vulcão de dor
que me devorava
as entranhas...
Braços piedosos
apartaram-me,
então, do
rebanho
sinistro. Fui
internada num
manicômio que
não saberei
descrever –
naturalmente
aprisionada,
porque a loucura
me invadira o
espírito e o
fogo da
alienação mental
me calcinava os
nervos.
Ouvi preleções
sobre a vida
eterna, ouvi
preces,
rogativas,
exortações,
frases
consoladoras,
leituras
edificantes,
contudo, na cela
que as minhas
trevas de mãe
delituosa
povoavam de
pesadelos
amargos, eu
apenas ouvia o
choro de meu
filhinho...
Cristalizara-se-me
a aflição. As
minhas
recordações,
tomando
consistência, os
meus
pensamentos,
materializados,
e todo o cortejo
de remorsos que
eu não podia
alijar da mente,
subjugavam-me o
crânio,
dominavam-me os
sentimentos e, a
falar verdade,
nada compreendi,
porque as chamas
do sofrimento me
crepitavam na
alma toda...
Alucinada,
humilhada e
vencida, roguei
à Mãe Santíssima
novo acréscimo
de piedade, e a
Divina Estrela,
advogada de
todos os
pecadores e,
muito
particularmente,
a Mãe Augusta de
todas as
pecadoras da
Terra,
compadeceu-se de
minhas penas...
É
assim que
transito hoje do
hospício que me
albergava para o
berço de
provação que me
aguarda no
mundo. Volto,
hoje, a nova
experiência
terrena...
Que gênero de
luta me espera?
Serei
estrangulada ao
nascer?
Terei, mirradas,
as mãos
assassinas?
Ou quem sabe
exibirei na via
pública as
chagas de um
corpo aleijado e
infeliz?
Nada sei do
futuro... Sei,
no entanto, que
Nossa Mãe
Celestial
condoeu-se de
minha sorte e
que, amparada
por nossa Divina
Estrela,
palmilharei o
grande caminho
da restauração.
Mãe Bendita, Mãe
dos pecadores,
Lírio de Nazaré,
ajuda-me ainda;
pois, em minha
amargura, Mãe
Amantíssima, não
há senão
justiça, não há
senão harmonia,
não há senão a
misericórdia e a
bênção da grande
Lei.
Mensagem
transmitida na
noite de 23 de
agosto de 1956.
Do livro
Vozes do Grande
Além, obra
mediúnica
recebida pelo
médium Francisco
Cândido Xavier.