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Crônicas e Artigos

Ano 9 - N° 409 - 12 de Abril de 2015

IVOMAR SCHÜLER DA COSTA
ivomarcosta@gmail.com
Pelotas, RS (Brasil)

 


Abnegação: fazer o bem ao outro em primeiro lugar


A abnegação, a terceira na classificação que Kardec faz das virtudes elementares da caridade, é de extrema importância. Talvez seja a que, no senso comum, mais se confunda com a própria caridade.

Comecemos explicando que abnegação é a realização efetiva do bem de outrem acima do nosso próprio bem, o que significa colocar de lado a satisfação prioritária das nossas necessidades individuais em prol da satisfação das necessidades dos outros. Acontece que entre a realização do bem para o outro e a nossa vontade de realizá-lo existem imensos obstáculos internos e externos que devem ser vencidos. 

Quando se tem duas alternativas excludentes, como as de realizar o nosso próprio bem ou o bem do outro em primeiro lugar, obrigatoriamente deve-se escolher uma e, por conseguinte, renunciar a outra. Se renunciamos aos próprios benefícios ou vantagens para que o bem do próximo se realize, fazemos um ato de abnegação. Portanto, esta virtude caracteriza-se por dois momentos, um é o de escolha e o outro é o dos esforços necessários para a realização do bem do outro. Assim, escolha e esforço se distribuem em dois momentos iterativos. As ações resultantes destes momentos são conhecidas como renúncia e “sacrifício”.

Conjuntamente aos dois momentos, destacamos três notas constituintes da abnegação: a reflexão, a constância e o desinteresse pessoal.

Nem sempre o que é o bem para o outro está claro em nossa mente. É preciso, então, refletir para distinguir e deliberar conscientemente e livremente. Como uma ação realizada involuntariamente ou inconscientemente está desprovida de valor moral, a distinção, a deliberação e a escolha do que é o bem para nós e o bem para outrem se reveste de alta importância. Kardec nos ensina que a abnegação irrefletida é como fogo de palha, ou seja, não tem continuidade, apaga-se ao primeiro vento. Assim, a reflexão torna a abnegação mais firme: Ao elogiar os espíritas espanhóis ele diz: [...] não uma abnegação irrefletida, mas calma, fria, como a do soldado que caminha para o combate dizendo a si mesmo: O que quer que me custe isto, eu cumprirei o meu dever. Não é essa coragem que flameja como um fogo de palha e se extingue ao primeiro alarme; [...][i].

Ao comparar a irreflexão ao fogo de palha, que se apaga facilmente, Kardec também ressalta a constância, a continuidade dos esforços para realizar o bem do outro. E, se não houver pleno desinteresse pessoal, ou seja, se o esforço não for feito sem a busca de vantagens ou benefícios pessoais, com a mais pura intenção de praticar o bem pelo próprio bem, jamais será abnegação verdadeira.

Mario Ferreira dos Santos[ii] esclarece no seu “Dicionário de Ciências Sociais e Culturais” que o termo “abnegação”[iii] deriva da palavra latina abnegatio, cujo sentido é o de “ação de sacrifício” [iv]. O termo é formado pela junção dos termos latinos sacrum e facere, ou “fazer o sagrado”. Ele nos diz que “Etimologicamente significa a oferta ou destruição de um bem sensível em benefício de um ser superior, a fim de reverenciá-lo, ou para agradecer os benefícios recebidos, ou para pedir perdão pelos erros praticados. O sacrifício religioso realiza-se por meio de rituais e cerimônias”; Sacrifício “É também a renúncia voluntária do que se possui ou do que se poderá obter com um fim religioso, moral, artístico e até utilitário”. Portanto, não se trata de qualquer sacrifício, mas o sacrifício voluntário de bens que se possui ou se possuirá, ou de si mesmo, em benefício de outrem. O bem maior que um indivíduo poderá ofertar ou renunciar é a sua própria vida, quando ele se entrega totalmente ao bem do próximo, de maneira constante.

Naturalmente, a finalidade da renúncia é puramente espiritual. Deveras, o Espiritismo nos ensina a espiritualizar o sacrifício. Na antiguidade, quando éramos ainda mais imperfeitos do que hoje, precisávamos de manifestações exteriores de adoração, ou seja, precisávamos “materializar” o nosso “fazer sagrado”, ofertando ou destruindo coisas materiais, inclusive animais e seres humanos, em honra da divindade.  Hoje sabemos que o sacrifício que devemos realizar é o do nosso egoísmo, tornando desnecessários rituais e cerimônias exteriores. Observemos que esta oferta ou destruição de algo deve ser feito em “benefício de um ser superior”. Jesus ensinou que devemos amar a Deus, amando ao próximo; assim, o “ser superior” para nós é o próximo, o outro, por isso a abnegação é o sacrifício em benefício do outro. Na abnegação o outro passa a ter prioridade sobre nós mesmos.

Embora durante muito tempo imperasse esta noção mais materializada de sacrifício, e mesmo que em “O Evangelho segundo o Espiritismo” alguns Espíritos se utilizem desta terminologia, o sentido correto dela é o de esforço. Realizamos a renúncia e o esforço quando doamos, além daquilo que nos é supérfluo, o que nos é verdadeiramente necessário, ou então abdicamos das nossas facilidades e praticamos o bem a custo de enfrentarmos situações que para nós sejam difíceis. Uma análise atenta das obras básicas do Espiritismo nos mostra, então, que “sacrifício” é o esforço concretizado e abnegação é o resultado da superação do egoísmo, do interesse pessoal, para promover o bem do próximo.

Existe ainda um entendimento equivocado que se faz necessário esclarecer. Ser abnegado não significa que se deva abdicar da própria razão e vontade para se submeter à vontade de outra pessoa ou instituição: “Jamais o Espiritismo disse que seria preciso fazer abnegação de seu julgamento, [...]”[v], ou seja, ninguém precisa renunciar à sua capacidade de pensar e julgar para ser abnegado. A obediência estreita não é abnegação. Ao contrário, ela exige que estas duas faculdades humanas sejam constantemente usadas e fortalecidas, pois se assim não for, carecerá de valor moral. Um ser sem vontade é uma “coisa”, portanto, sem liberdade. Não importa, caso fosse possível, se o ser abdicou ou lhe foi retirada a vontade; o que importa é que ele se tornou “escravo”. Algumas expressões que aparecem nos evangelhos e nas obras básicas, como “esquecimento de si mesmo” [vi] e “renúncia à própria personalidade” têm o significado de autodesapego e não de autoanulação, como ainda equivocadamente pensam algumas pessoas.

Contrariamente ao entendimento equivocado, renúncia e sacrifício, ou escolha e esforço não significam de maneira alguma a anulação total da individualidade, mas sim elevação moral. A abnegação é uma virtude que em vez de anular nos faz transcender, pela renovação do eu. É este o sentido das seguintes passagens dos evangelhos: "Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz" [vii], em que renunciar, como esclarecido, implica realizar a escolha de abandonar o egoísmo, e tomar a sua cruz é realizar o esforço necessário para tanto, "pois quem quiser conservar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por mim, salvá-la-á". Esta é uma promessa de conquista da renovação íntima pelo encontro consigo mesmo.

Para que entendamos mais claramente, lembremos que salvação, em Espiritismo, significa libertação. Então, quem realiza a escolha de abandonar o egoísmo e se predispõe ao esforço necessário para vencer esta força titânica, salva-se, ou seja, liberta-se dele; a abnegação tem papel importante nesta libertação.

No intuito de entendermos completamente o alto significado desta virtude essencial à caridade, apresentamos exemplos que nos dão dados pela insigne Joanna de Ângelis:

“Tem origem nos pequenos cometimentos do auxílio fraternal, com renúncia pessoal, mediante a qual a imolação reserva para quem a exerce a alegria de privar-se de um prazer, em prol do gozo de outrem.

 Uma noite de sono reparador trocada pela vigília junto a um enfermo não vinculado diretamente aos sentimentos, quer pela consanguinidade ou por interesses de outra procedência;

 A cessão de um bem que é preciso e quiçá faça falta, desde que constitua alegria de outra pessoa;

 A paciência e a doçura na atitude, com esforço e sem acrimônia interna, na desincumbência de um grave mister, dirigido às criaturas humanas;

 A jovialidade, ocultando as próprias dores, de nodo a não afligir aqueles com os quais se convive;

 A perseverança discreta no trabalho mortificante, sem queixa nem enfado, desde que resultem benefícios para os demais;

 A ação não violenta, o silêncio ante a ofensa, a não defesa em face de indébitas acusações, considerando, com esse esforço sacrificial, não comprometer nem ofender a ninguém, são expressões de renúncia ao amor-próprio, dando lugar à abnegação, que ora escasseia entre as criaturas, e, no entanto, é essencial para a construção do bem entre os homens da Terra” [viii].

Do ponto de vista da ética, abnegação é a virtude que tem como objetivo a realização dos interesses do próximo[ix] prioritariamente aos nossos. Ela se opõe ao individualismo, ao hedonismo e, em certa medida, ao utilitarismo.

Cremos ter conceituado os elementos principais da abnegação, embora não sejam os únicos, mostrando que ela é constituída pelo desinteresse pessoal, pela reflexão e pela constância; caracterizando-se ainda pela escolha refletida e pelo esforço para fazer o bem ao outro acima do nosso próprio bem.

 


 

[i] Kardec, Allan. Revista Espírita. Março de 1869. P. 48 – Apóstolos do Espiritismo na Espanha.

[ii] Filósofo brasileiro, já desencarnado, pouco conhecido dos brasileiros, mas que começa a ser redescoberto. Nascido em Jundiaí, SP, e criado em Pelotas, RS, onde passou a maior parte da sua juventude e completou estudos.

[iii] Mario Ferreira dos Santos. Dicionário de Ciências Sociais e Culturais, p. 7.

[iv] Mario Ferreira dos Santos. Dicionário de Ciências Sociais e Culturais, p. 1217.

[v] Allan Kardec. Revista Espírita. 1869.

[vi] Kardec, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. X. Item 14; Cap. XVII. Item 8.

[vii] O Novo Testamento. Evangelho de Mateus 16: 24; Evangelho de Lucas, 9:23.

[viii] Franco, Divaldo P & Joanna de Ângelis. As Leis Morais da Vida. Lição 34. Ed. Alvorada.

[ix] Abbagnano, Nicolla. Dicionário de Filosofia.


 

 


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