IVOMAR SCHÜLER
DA COSTA
ivomarcosta@gmail.com
Pelotas, RS
(Brasil)
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Abnegação: fazer
o bem ao outro
em primeiro
lugar
A abnegação, a
terceira na
classificação
que Kardec faz
das virtudes
elementares da
caridade, é de
extrema
importância.
Talvez seja a
que, no senso
comum, mais se
confunda com a
própria
caridade.
Comecemos
explicando que
abnegação é a
realização
efetiva do bem
de outrem acima
do nosso próprio
bem, o que
significa
colocar de lado
a satisfação
prioritária das
nossas
necessidades
individuais em
prol da
satisfação das
necessidades dos
outros. Acontece
que entre a
realização do
bem para o outro
e a nossa
vontade de
realizá-lo
existem imensos
obstáculos
internos e
externos que
devem ser
vencidos.
Quando se tem
duas
alternativas
excludentes,
como as de
realizar o nosso
próprio bem ou o
bem do outro em
primeiro lugar,
obrigatoriamente
deve-se escolher
uma e, por
conseguinte,
renunciar a
outra. Se
renunciamos aos
próprios
benefícios ou
vantagens para
que o bem do
próximo se
realize, fazemos
um ato de
abnegação.
Portanto, esta
virtude
caracteriza-se
por dois
momentos, um é o
de escolha e o
outro é o dos
esforços
necessários para
a realização do
bem do outro.
Assim, escolha e
esforço se
distribuem em
dois momentos
iterativos. As
ações
resultantes
destes momentos
são conhecidas
como renúncia e
“sacrifício”.
Conjuntamente
aos dois
momentos,
destacamos três
notas
constituintes da
abnegação: a
reflexão, a
constância e o
desinteresse
pessoal.
Nem sempre o que
é o bem para o
outro está claro
em nossa mente.
É preciso,
então, refletir
para distinguir
e deliberar
conscientemente
e livremente.
Como uma ação
realizada
involuntariamente
ou
inconscientemente
está desprovida
de valor moral,
a distinção, a
deliberação e a
escolha do que é
o bem para nós e
o bem para
outrem se
reveste de alta
importância.
Kardec nos
ensina que a
abnegação
irrefletida é
como fogo de
palha, ou seja,
não tem
continuidade,
apaga-se ao
primeiro vento.
Assim, a
reflexão torna a
abnegação mais
firme: Ao
elogiar os
espíritas
espanhóis ele
diz: [...]
não uma
abnegação
irrefletida, mas
calma, fria,
como a do
soldado que
caminha para o
combate dizendo
a si mesmo: O
que quer que me
custe isto, eu
cumprirei o meu
dever. Não é
essa coragem que
flameja como um
fogo de palha e
se extingue ao
primeiro alarme;
[...][i].
Ao comparar a
irreflexão ao
fogo de palha,
que se apaga
facilmente,
Kardec também
ressalta a
constância, a
continuidade dos
esforços para
realizar o bem
do outro. E, se
não houver pleno
desinteresse
pessoal, ou
seja, se o
esforço não for
feito sem a
busca de
vantagens ou
benefícios
pessoais, com a
mais pura
intenção de
praticar o bem
pelo próprio
bem, jamais será
abnegação
verdadeira.
Mario Ferreira
dos Santos[ii]
esclarece no seu
“Dicionário de
Ciências Sociais
e Culturais” que
o termo
“abnegação”[iii]
deriva da
palavra latina
abnegatio,
cujo sentido é o
de “ação de
sacrifício”
[iv].
O termo é
formado pela
junção dos
termos latinos sacrum
e facere,
ou “fazer o
sagrado”. Ele
nos diz que “Etimologicamente
significa a
oferta ou
destruição de um
bem sensível em
benefício de um
ser superior, a
fim de
reverenciá-lo,
ou para
agradecer os
benefícios
recebidos, ou
para pedir
perdão pelos
erros
praticados. O
sacrifício
religioso
realiza-se por
meio de rituais
e cerimônias”;
Sacrifício “É
também a
renúncia
voluntária do
que se possui ou
do que se poderá
obter com um fim
religioso,
moral, artístico
e até
utilitário”.
Portanto, não se
trata de
qualquer
sacrifício, mas
o sacrifício
voluntário de
bens que se
possui ou se
possuirá, ou de
si mesmo, em
benefício de
outrem. O bem
maior que um
indivíduo poderá
ofertar ou
renunciar é a
sua própria
vida, quando ele
se entrega
totalmente ao
bem do próximo,
de maneira
constante.
Naturalmente, a
finalidade da
renúncia é
puramente
espiritual.
Deveras, o
Espiritismo nos
ensina a
espiritualizar o
sacrifício. Na
antiguidade,
quando éramos
ainda mais
imperfeitos do
que hoje,
precisávamos de
manifestações
exteriores de
adoração, ou
seja,
precisávamos
“materializar” o
nosso “fazer
sagrado”,
ofertando ou
destruindo
coisas
materiais,
inclusive
animais e seres
humanos, em
honra da
divindade. Hoje
sabemos que o
sacrifício que
devemos realizar
é o do nosso
egoísmo,
tornando
desnecessários
rituais e
cerimônias
exteriores.
Observemos que
esta oferta ou
destruição de
algo deve ser
feito em “benefício
de um ser
superior”.
Jesus ensinou
que devemos amar
a Deus, amando
ao próximo;
assim, o “ser
superior”
para nós é o
próximo, o
outro, por isso
a abnegação é o
sacrifício em
benefício do
outro. Na
abnegação o
outro passa a
ter prioridade
sobre nós
mesmos.
Embora durante
muito tempo
imperasse esta
noção mais
materializada de
sacrifício, e
mesmo que em “O
Evangelho
segundo o
Espiritismo”
alguns Espíritos
se utilizem
desta
terminologia, o
sentido correto
dela é o de
esforço.
Realizamos a
renúncia e o
esforço quando
doamos, além
daquilo que nos
é supérfluo, o
que nos é
verdadeiramente
necessário, ou
então abdicamos
das nossas
facilidades e
praticamos o bem
a custo de
enfrentarmos
situações que
para nós sejam
difíceis. Uma
análise atenta
das obras
básicas do
Espiritismo nos
mostra, então,
que “sacrifício”
é o esforço
concretizado e
abnegação é o
resultado da
superação do
egoísmo, do
interesse
pessoal, para
promover o bem
do próximo.
Existe ainda um
entendimento
equivocado que
se faz
necessário
esclarecer. Ser
abnegado não
significa que se
deva abdicar da
própria razão e
vontade para se
submeter à
vontade de outra
pessoa ou
instituição:
“Jamais o
Espiritismo
disse que seria
preciso fazer
abnegação de seu
julgamento,
[...]”[v],
ou seja,
ninguém precisa
renunciar à sua
capacidade de
pensar e julgar
para ser
abnegado. A
obediência
estreita não é
abnegação. Ao
contrário, ela
exige que estas
duas faculdades
humanas sejam
constantemente
usadas e
fortalecidas,
pois se assim
não for,
carecerá de
valor moral. Um
ser sem vontade
é uma “coisa”,
portanto, sem
liberdade. Não
importa, caso
fosse possível,
se o ser abdicou
ou lhe foi
retirada a
vontade; o que
importa é que
ele se tornou
“escravo”.
Algumas
expressões que
aparecem nos
evangelhos e nas
obras básicas,
como
“esquecimento de
si mesmo”
[vi]
e “renúncia à
própria
personalidade”
têm o
significado de
autodesapego e
não de
autoanulação,
como ainda
equivocadamente
pensam algumas
pessoas.
Contrariamente
ao entendimento
equivocado,
renúncia e
sacrifício, ou
escolha e
esforço não
significam de
maneira alguma a
anulação total
da
individualidade,
mas sim elevação
moral. A
abnegação é uma
virtude que em
vez de anular
nos faz
transcender,
pela renovação
do eu. É este o
sentido das
seguintes
passagens dos
evangelhos: "Se
alguém quer vir
após mim,
renuncie a si
mesmo, e tome
cada dia a sua
cruz"
[vii],
em que
renunciar, como
esclarecido,
implica realizar
a escolha de
abandonar o
egoísmo, e tomar
a sua cruz é
realizar o
esforço
necessário para
tanto, "pois
quem quiser
conservar a sua
vida,
perdê-la-á; mas
quem perder a
sua vida por
mim,
salvá-la-á".
Esta é uma
promessa de
conquista da
renovação íntima
pelo encontro
consigo mesmo.
Para que
entendamos mais
claramente,
lembremos que
salvação, em
Espiritismo,
significa
libertação.
Então, quem
realiza a
escolha de
abandonar o
egoísmo e se
predispõe ao
esforço
necessário para
vencer esta
força titânica,
salva-se, ou
seja, liberta-se
dele; a
abnegação tem
papel importante
nesta
libertação.
No intuito de
entendermos
completamente o
alto significado
desta virtude
essencial à
caridade,
apresentamos
exemplos que nos
dão dados pela
insigne Joanna
de Ângelis:
“Tem origem nos
pequenos
cometimentos do
auxílio
fraternal, com
renúncia
pessoal,
mediante a qual
a imolação
reserva para
quem a exerce a
alegria de
privar-se de um
prazer, em prol
do gozo de
outrem.
Uma noite de
sono reparador
trocada pela
vigília junto a
um enfermo não
vinculado
diretamente aos
sentimentos,
quer pela
consanguinidade
ou por
interesses de
outra
procedência;
A cessão de um
bem que é
preciso e quiçá
faça falta,
desde que
constitua
alegria de outra
pessoa;
A paciência e a
doçura na
atitude, com
esforço e sem
acrimônia
interna, na
desincumbência
de um grave
mister, dirigido
às criaturas
humanas;
A jovialidade,
ocultando as
próprias dores,
de nodo a não
afligir aqueles
com os quais se
convive;
A perseverança
discreta no
trabalho
mortificante,
sem queixa nem
enfado, desde
que resultem
benefícios para
os demais;
A ação não
violenta, o
silêncio ante a
ofensa, a não
defesa em face
de indébitas
acusações,
considerando,
com esse
esforço
sacrificial,
não comprometer
nem ofender a
ninguém, são
expressões de
renúncia ao
amor-próprio,
dando lugar à
abnegação, que
ora escasseia
entre as
criaturas, e, no
entanto, é
essencial para a
construção do
bem entre os
homens da Terra”
[viii].
Do ponto de
vista da ética,
abnegação é a
virtude que tem
como objetivo a
realização dos
interesses do
próximo[ix]
prioritariamente
aos nossos. Ela
se opõe ao
individualismo,
ao hedonismo e,
em certa medida,
ao utilitarismo.
Cremos ter
conceituado os
elementos
principais da
abnegação,
embora não sejam
os únicos,
mostrando que
ela é
constituída pelo
desinteresse
pessoal, pela
reflexão e pela
constância;
caracterizando-se
ainda pela
escolha
refletida e pelo
esforço para
fazer o bem ao
outro acima do
nosso próprio
bem.
[i]
Kardec,
Allan.
Revista
Espírita.
Março de
1869. P.
48 –
Apóstolos
do
Espiritismo
na
Espanha.
[ii]
Filósofo
brasileiro,
já
desencarnado,
pouco
conhecido
dos
brasileiros,
mas que
começa a
ser
redescoberto.
Nascido
em
Jundiaí,
SP, e
criado
em
Pelotas,
RS, onde
passou a
maior
parte da
sua
juventude
e
completou
estudos.
[iii]
Mario
Ferreira
dos
Santos.
Dicionário
de
Ciências
Sociais
e
Culturais,
p. 7.
[iv]
Mario
Ferreira
dos
Santos.
Dicionário
de
Ciências
Sociais
e
Culturais,
p. 1217.
[v]
Allan
Kardec.
Revista
Espírita.
1869.
[vii]
O Novo
Testamento.
Evangelho
de
Mateus
16: 24;
Evangelho
de
Lucas,
9:23.
[viii]
Franco,
Divaldo
P &
Joanna
de
Ângelis.
As Leis
Morais
da Vida.
Lição
34. Ed.
Alvorada.
[ix]
Abbagnano,
Nicolla.
Dicionário
de
Filosofia.