MARCELO TEIXEIRA
maltemtx@uol.com.br
Petrópolis, RJ (Brasil)
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A humildade é fértil
Quem me despertou para a
descoberta que dá título
a este capítulo foi o
ator Eriberto Leão, em
entrevista concedida ao
Programa do Jô
(TV Globo) em 11 de
dezembro de 2009. Na
ocasião, ele esclareceu
que a palavra humildade
deriva da palavra húmus,
que significa terra boa,
apta a receber a semente
e fazê-la germinar,
gerando frutos e mais
frutos. Fui, então, ao
dicionário, que
confirmou o que o
Eriberto disse. A
humildade, portanto, é
fértil. Para mim, uma
das maiores descobertas
dos últimos tempos.
É uma grande
oportunidade para
revermos o conceito que
temos acerca de
humildade,
equivocadamente
interpretada como baixar
a cabeça, ser simplório,
usar roupas puídas e
similares. Ser humilde
não é nada disso,
felizmente. E
humilhar-se deixa também
de significar
rebaixar-se. É deixar-se
fecundar. Muito mais
fascinante e profundo.
Essa descoberta nos leva
a revisitar algumas
passagens evangélicas
para percebermos a
importância de sermos
férteis e deixarmos
fecundar no solo da
consciência as várias
sementes que a vida joga
em nós diariamente.
Vou começar com a
primeira das
bem-aventuranças:
“Bem-aventurados os
pobres de espírito,
porque deles é o reino
dos céus”.
Em O Evangelho
segundo o Espiritismo,
cap. VII, item 2, Allan
Kardec alerta que Jesus,
na citada
bem-aventurança, não se
refere aos desprovidos
de inteligência, mas aos
humildes. É para os
férteis, portanto, que o
reino dos céus (estado
permanente de
felicidade, consciência
tranquila e sensação de
dever cumprido) está
reservado.
No livro A Voz do
Monte, o escritor
Richard Simonetti
ressalta que não é à toa
que essa bem-aventurança
é a primeira a ser
proclamada no Sermão do
Monte. Jesus Cristo,
sendo o Mestre por
excelência, quis dar uma
sequência lógica a tão
grandiosos ensinamentos.
Portanto, quis deixar
claro que, para
começarmos a jornada
evolutiva de forma
lúcida e coerente,
devemos ser férteis o
suficiente para termos
uma ideia exata de quem
de fato somos. Como isso
se dá? Quando
reconhecemos que somos
imperfeitos, que erramos
muito, que nem sempre
estamos com a razão, que
devemos saber receber
uma crítica construtiva,
que a pessoa que nos
ofende pode estar
passando por um momento
difícil etc. Essas são
algumas das sementes que
nos são jogadas no
cotidiano. Se a terra da
nossa consciência for
humilde (fértil), as
sementes resultarão em
colheitas de
autoconhecimento,
compreensão e
burilamento íntimo, por
exemplo. Mas se a terra
for árida e infértil, as
sementes não germinarão.
Resultado: cólera,
revide, orgulho ferido,
insegurança, fanatismo e
outros tantos males que
nos acometem por falta
de humildade.
Vai ver é por isso que,
na Parábola do Semeador,
outro conhecido trecho
do Novo Testamento,
Jesus faz questão de
explicitar a natureza
dos vários terrenos que
receberam as sementes
que o semeador jogou. As
três primeiras levas de
sementes caíram ao longo
do caminho, entre pedras
e em meio a espinheiros.
Nenhuma delas brotou;
foram devoradas por
pássaros, esturricadas
pelo sol ou abafadas
pelos espinhos. Foram
liquidadas pela falta de
humildade, caracterizada
por desinteresse,
superficialidade,
opressão, egoísmo,
disputa de poder,
desdém, preconceito. Em
contrapartida, a quarta
leva de sementes caiu na
terra boa e produziu
“cem por um; outras,
sessenta e outras,
trinta”. Isto é,
conforme o grau de
fertilidade, as pessoas
amadureceram, deixaram
falar a voz da
consciência e produziram
de acordo com o
entendimento que
tiveram. Mas não
deixaram de produzir.
Isso significa que,
mesmo produzindo pouco,
a tendência é que a
fertilidade aumente e,
aos poucos, o ser humano
irá aprimorando o grau
de entendimento, estando
apto, assim, a ser mais
humilde, à medida que
for dilatando sua
percepção e
reconhecendo-se
imperfeito, sempre
necessitando aprender
algo e estando aberto ao
novo.
Outro bom exemplo, ainda
utilizando o Novo
Testamento, é o célebre
episódio da mulher
adúltera, prestes a ser
apedrejada pela turba
que pega e lincha. Aí,
Jesus diz que deve
atirar a primeira pedra
aquele que estiver sem
pecado. O que o Mestre
fez? Jogou sementes de
compreensão que, por
motivos variados, creio,
foram assimiladas por
aqueles homens de pedra
em punho. Eles foram
levados a ter uma
atitude humilde/fértil.
Deixaram o ensinamento
do Cristo brotar no solo
de suas consciências.
Deixaram de lado a
aridez do orgulho e da
intolerância. A semente
fecundou o solo de cada
um deles. Por
conseguinte, brotaram
muitas, que fizeram
aqueles homens pensarem:
- Nossa, eu também
tenho inúmeros defeitos.
– Se eu estivesse no
lugar dela, gostaria que
me atirassem pedras? – O
que estou fazendo com
essa pedra na mão se nem
conheço essa mulher? –
Não devo dar ouvidos a
quem me incita a jogar
uma pedra nessa pobre
criatura. Senão, eu é
que corro o risco de ser
apontado como agitador!
Enfim, sementes que,
naquele momento, fizeram
vários terrenos produzir
cinco, dez, vinte ou
cem, não importa. Foi
uma produção suficiente
para todos largarem as
pedras e irem embora,
renovados que estavam
por terem se deixado
fertilizar pela semente
do ensinamento do
Cristo, que fez com eles
reavaliassem, num átimo
de segundo, seus
próprios valores. Isso é
ser humilde. Cada um
daqueles homens deve ter
sido humilde a seu modo.
Creio que quando
pensamos em humildade,
devemos também ter
sensibilidade para
perceber que seu
significado vai além do
antônimo de orgulho.
No livro Trabalhando
para si Mesmo, o
escritor José Carlos
Leal conta a história de
um professor que, depois
de 20 anos lecionando em
um colégio, foi
demitido. Ele, então,
pegou o dinheiro da
indenização e abriu um
estabelecimento de
ensino. Hoje, ganha
muito mais como dono do
próprio nariz. Ele foi
humilde! Deixou-se
fecundar pela
oportunidade que a
situação difícil
apresentava e deu a
volta por cima. Se não
fosse humilde, teria
caído em depressão ou
iria procurar outro
trabalho que o
mantivesse no mesmo
patamar salarial. Ou
simplesmente ficaria com
raiva do ex-empregador,
cultivando a aridez do
rancor e do orgulho
ferido. A humildade tem,
portanto, muito a ver
com empreendedorismo,
palavra muito utilizada
nos dias de hoje. É a
fertilidade de
percebermos que podemos
tentar outro caminho.
Evaristo Antunes, primo
de meu avô paterno e
presidente da União
Municipal Espírita de
Petrópolis (Umep) por
muitos anos, certa vez
testemunhou uma briga de
trânsito. Ao tentar
acalmar um dos
motoristas, ouviu dele
que estava com muita
raiva porque o outro
envolvido o havia
mandado para algum lugar
pouco recomendável.
Evaristo, com muita
calma e bom humor,
disse: - Ué, meu
filho. Não vá!
Simples assim. Eis aí a
humildade que é sinônimo
de bom humor. Devemos
ser férteis o suficiente
para levarmos na
esportiva quando nos
agridem com palavras. É
uma humildade que tem de
se apresentar cheia de
presença de espírito.
Geralmente, desarma o
ofensor e o deixa sem
ação, já que tivemos a
humildade de não dar
importância aos
desaforos. O agressor
ficará sem graça,
perceberá que sua
agressividade não dará
em nada e irá se
retirar, fecundado pela
nossa reação
surpreendente. Corre o
risco de, mais adiante,
ele rir da situação,
como eu já vi acontecer.
No final da década de
1970, foi ao ar na TV
uma campanha
publicitária chamada
“Desarme-se e viva
melhor”. Consistia em
vários comerciais em que
pessoas agressivas eram
“desarmadas” pela
gentileza. Lembro que,
em um dos comerciais, um
homem começava a
discutir com outro
porque acreditava que
este outro havia furado
a fila de espera do
restaurante. Este
segundo, em vez de
entrar na pilha da
discussão, teve a
humildade de se
desculpar. Ato contínuo,
estendeu a mão para o
estressado e convidou,
ele e esposa, para se
sentarem à mesa, pois
também estava
acompanhado da mulher. O
indivíduo que iniciou a
discussão sorriu sem
graça e aceitou o
convite.
Conheço uma história
ótima sobre duas pessoas
(não sei se parentas ou
amigas) que começaram a
discutir. Uma delas, no
auge da briga, disse
para a outra algo do
tipo “Você é isto,
isso, aquilo e mais
aquilo outro!” A
ofendida, então,
virou-se para a ofensora
e perguntou: “Você
acha mesmo que eu sou
isso tudo aí?” “Acho
sim!”, respondeu a
primeira pessoa,
encolerizada. A segunda,
então, arrematou,
serena: Então tá!
E pôs fim à briga,
deixando a outra
completamente sem ação.
A humildade às vezes se
mostra difícil porque
requer presença de
espírito, algo que anda
meio esquecido.
Preferimos apelar para o
estresse, a discussão
acalorada, o mau humor e
o orgulho ferido.
Resultado: terreno
infértil que não deixa
nenhuma semente brotar.
Miriam Machado, com quem
trabalhei na Editora
Vozes, contou certa vez
que o ex-marido entrou
numa de querer emancipar
a filha, então com 16
anos. Para tanto, fez a
cabeça da menina. Esta,
por sua vez, começou a
perseguir a mãe com a
ideia. O que Miriam fez?
Foi humilde. De que
forma? Concordou de
pronto com a
emancipação, alegando
que, se a filha e o
ex-marido queriam, não
seria ela, voto vencido,
a ficar brigando (falta
de humildade). O assunto
morreu. Se a
inteligência de Miriam
não fosse humilde, ela
bateria de frente com
ambos e colocaria os
três num infindável
estresse.
Há muitos outros
comportamentos que
evidenciam nossa falta
de
humildade/fertilidade.
Teimosia é um deles.
Sabe aquelas pessoas que
insistem em um caso
perdido? Há várias
histórias assim. Gente
que se recusa a enxergar
o óbvio e passa às vezes
uma existência inteira
malhando em ferro frio.
Conheci um senhor viúvo
que não se conformava
com as escolhas da única
filha. Na cabeça dele, a
filha tinha de ser uma
princesa, além de
estudiosa. Só que ela
nunca ligou para estudar
(terminou aos trancos o
Ensino Médio), não casou
como manda o figurino –
apenas juntou as escovas
de dente com o amado –,
fez um curso de
cabeleireira e foi
trabalhar num salão.
Perfeito para ela, que
sempre cuidou direitinho
do pai, dos filhos e do
marido. Só que o pai, em
vez de ter a humildade
de enxergar com bons
olhos as escolhas da
filha, preferiu
persegui-la. Foram anos
e mais anos de
implicâncias e agressões
verbais, direcionadas ao
marido dela também. Na
cabeça desse pai, a
filha tinha de voltar a
estudar e se casar com
véu, grinalda e flor de
laranjeira. Passou
décadas estressando a
família e teimando
contra o óbvio, feito um
cachorro tentando morder
o próprio rabo – ou
seja, roda, roda e não
consegue. Até que
desencarnou. Agora, deve
estar aprendendo o valor
de uma postura fértil,
que se deixa fecundar
pelas escolhas justas
que os filhos fazem,
embora nem sempre
condizentes com os
sonhos dos pais. Saber
respeitar as escolhas
alheias é também ser
humilde.
Quero falar de outra
evidência da falta de
humildade: a dificuldade
que algumas pessoas têm
de aceitar as mudanças
pelas quais o mundo
passa. Falo de gente
reacionária, que se
recusa a admitir que o
novo sempre vem. Sim,
reacionarismo e terreno
árido e duro fazem uma
parceria bastante
incômoda. É a turma que
não dá o braço a torcer
de jeito nenhum; os
donos da verdade. Haja
pá, enxada, ancinho,
picareta e fertilizante
para revolver essas
terras! Mesmo assim,
muitas continuam áridas.
Pena!
Meu consolo é saber que
um dia, a golpes de dor,
a Terra se verá obrigada
a ser humilde e,
finalmente, deixar-se-á
fecundar pelas sementes
de uma nova mentalidade.
Se não for nesta
existência, será numa
próxima ou até mesmo no
plano espiritual.
Afinal, os empedernidos
também desencarnarão um
dia. E a meu ver, não
existe maior gesto de
humildade do que se
deixar fecundar pela
realidade da vida
espiritual. Para quem é
árido, deve ser um
grande baque. Talvez
seja por isso que as
reuniões mediúnicas
tenham sempre tanto
trabalho, que é
esclarecer os que
deixaram este mundo e se
recusam a admitir o
fato.
Tenho de falar, também,
sobre gente que não
reconhece que errou e
que não pede desculpas,
mesmo sabendo que errou.
Já repararam como são
áridas e conturbadas,
desprovidas de paz
interior? Quantos
relacionamentos
conjugais, familiares e
entre amigos já se
desfizeram por causa da
falta de um simples
pedido de desculpas!
Quanta dureza de solo! E
o que dizer dos
fanáticos, seja por
religião, futebol,
partido político etc.?
Só eles estão certos. Os
demais, errados por
pensarem de forma
diferente. Mentes
fechadas que não se
deixam
fertilizar/humilhar pela
capacidade de perceber
que tudo é relativo.
Vou arrematar este
capítulo contando uma
reportagem a que assisti
no “Jornal Hoje” (TV
Globo), na década de
1990. Era sobre um
senhor da cidade de
Ituiutaba (MG). Nome:
Deócles Gomes Machado,
mas era carinhosamente
chamado de Tio Doc. Um
dia, Doc (desculpe a
intimidade) ficou viúvo.
Aposentado e já com
certa idade, em vez de
mergulhar na solidão,
optou por ser solidário.
Bem solidário, aliás.
Procurou terrenos
vazios, pediu
autorização aos donos e
iniciou uma lavoura em
cada um. As mudas, ele
comprou e continuou
comprando com o dinheiro
da aposentadoria. Em
pouco tempo, brotaram
cenoura, rabanete,
couve, espinafre,
batata, chuchu, abóbora,
alface, chicória,
tomate, beterraba,
agrião. E também
laranja, maçã, mamão,
banana, abacate e outras
tantas frutas e legumes
e verduras.
Tio Doc, então, pegou o
carrinho de mão e
começou a distribuir o
resultado das colheitas
nas creches e abrigos de
idosos da cidade.
“Quando eu morrer, não
vou levar nada. Tenho
que levar meus bons
atos. Trabalhar em
benefício do próximo”,
disse ele com uma
humildade que só quem é
muito grande sabe ter.
Confesso que chorei de
vergonha. Fiquei
comovido e profundamente
envergonhado de estar
diante daquele homem,
embora pela TV. Senti-me
tão pequeno que tive
vontade de ir chorar
debaixo da mesa, de tão
esmagado que fiquei
diante de tanta
grandeza, tanta
fertilidade que se
deixou germinar por
sementes de amor
incondicional ao
próximo. Sementes que
brotaram em forma de
doação e geraram
alimentos para pessoas
carentes. E tudo graças
a uma iniciativa tão
simples e tão forte, tão
bela!
Cerca de 20 anos depois,
Tio Doc desencarnou, e o
Jornal Nacional (TV
Globo) registrou a morte
daquele grande homem,
que chegou a alimentar
1,2 mil pessoas por mês.
Estava com 105 anos de
idade e decerto chegou
ao plano espiritual
colhendo frutos
abundantes originários
de tanta semente que ele
deixou germinar no solo
e no coração.
A história poderia parar
por aí. Só que Tio Doc
deixou seguidores. Entre
eles, Valmir, outro
aposentado, que ficou
cuidando das hortas em
terrenos baldios e
herdou de Deócles o amor
pela terra e o carinho
pelas crianças e idosos.
“Porque se uma pessoa
faz, a outra faz. Dez
mil ajudando, o que vai
acontecer? Vai melhorar
tudo, não vai?”,
arrematou.
Tanto terreno baldio ou
fechado espalhado por
aí! Já pensou se cada
pessoa resolver fazer
uma horta em um desses
terrenos e distribuir o
resultado da colheita a
quem necessita? Quantos
frutos de amor, doação e
humildade pra lá de
fértil erguendo pessoas!
Como foi bom descobrir
que a humildade é
fértil! Acho que isso
pode facilitar a
transformação moral de
muita gente, a começar
pela minha.
Bibliografia:
1-
LEAL, José Carlos.
Trabalhando para Si
Mesmo. Mil Folhas
Ed., 4ª Ed., 2000, Rio
de Janeiro, RJ.
2-
SIMONETTI, Richard. A
Voz do Monte.
Federação Espírita
Brasileira (FEB), 3ª
Ed., 1989, Brasília, DF.