Recentemente, folheei um
romance espírita, desses
cujos dramas se ancoram
no relato de épocas
diferentes: a do
passado, uma descrição
detalhada de vidas
aquinhoadas de beleza,
fortuna e poder; e a
atual, em situação
oposta, com as
personagens amargurando
reveses sem conta. Esses
romances certamente
contribuem na difusão da
ideia reencarnacionista,
porém, frequentemente,
induzem a crenças
equivocadas,
fortalecendo a noção de
que Deus dela se utiliza
como instrumento
punitivo-corretivo.
Embora existam estudos
histórico-filosóficos e
relatos de pesquisas
sobre a reencarnação,
não pude deixar de
refletir sobre a
necessidade de
abordá-la, por exemplo,
em uma perspectiva
sociopsicológica. É essa
visão que será
considerada neste
artigo.
Como definir a
reencarnação?
Simplificando, mas sem
esquecer Kardec[1],
podemos dizer que a
reencarnação supõe um
mecanismo de sucessivas
existências do Espírito,
ao longo dos séculos,
até o alcance de
condição espiritual que
dispensaria o seu
retorno, salvo em
caráter de missão
voluntária. A noção de
reencarnação é bastante
antiga em várias
culturas. Por exemplo,
vamos encontrá-la nos
livros dos Vedas, no
Hinduísmo, no Judaísmo,
entre os egípcios e em
muitos filósofos gregos,
como Pitágoras, Sócrates
e Platão[2]
e, mais recentemente, em
relatos de pesquisa[3].
As premissas da ideia
reencarnacionista
A ideia da reencarnação
se apoia em duas
premissas: (a) que a
alma é imortal e (b) que
a alma progride
continuamente. No
Cristianismo, a noção de
uma única vida também se
baseia na imortalidade;
contudo a condição
evolutiva pessoal já vem
definida desde o
nascimento e para
sempre. Ambos os dogmas,
da reencarnação e da
unicidade da existência,
explicam a destinação
final do Espírito, ou da
alma. No primeiro caso,
trata-se de um progresso
contínuo, com diferentes
experiências e
aquisições. No segundo
caso, a alma pode ser
destinada às
bem-aventuranças (céu),
à situação de sofrimento
relativo (purgatório) e
à pena eterna (inferno).
Por que o Cristianismo
adotou a doutrina de uma
única vida? Quais os
conceitos subjacentes a
essas doutrinas? São
questões discutidas
adiante.
Iniciamos por refletir
sobre a difusão dessas
doutrinas no tempo. Se a
ideia reencarnacionista
já estava presente no
mundo, muitos séculos
bem antes do surgimento
do movimento cristão e
até prevalecesse em
algumas culturas, é
razoável pensar que ela
tenha, de algum modo,
feito parte do modo de
entender o mundo pelos
pensadores da Igreja
nascente. Recordemos que
o Cristianismo nasceu na
cultura judaica, cuja
população, em geral,
tinha uma noção vaga
sobre a reencarnação, o
que, entretanto, não
acontecia na esfera do
rabinato[4],
salvo exceções.
O Judaísmo ante a
influência externa
Além disso, o Judaísmo
nunca foi um sistema
verdadeiramente fechado
e, em vários momentos
históricos, foi bastante
permeável à influência
de outras culturas.
Mesmo durante a fuga do
Egito que,
aparentemente, deveria
fortalecer uma cultura
judaica, havia a
preocupação constante
das lideranças em
relação “aos desvios”
religiosos do povo. E
isto se deu, inclusive,
algumas horas antes de
Moisés aparecer com as
“Pedras da Lei” (ver
Êxodo, 32, 4-9). O mesmo
ocorreu durante o
período de dominação na
Babilônia, de onde os
judeus trouxeram o
código de lei da
reciprocidade entre
crime-castigo (“olho por
olho...”). Fato
semelhante se repetiu
durante a ocupação
romana, quando o
Sinédrio age com
tolerância à pena de
morte por crucificação.
Considerando, por outro
lado, que as lideranças
do Caminho se esforçavam
por manter uma relação
amistosa com as
autoridades do país,
pode-se pensar que,
durante algum tempo, o
Cristianismo nascente
conviveu com duas
alternativas
doutrinárias, a da
existência única e a de
múltiplas existências,
reproduzindo, de certa
maneira, a cultura
judaica.
Qualquer uma das duas
poderia ter prevalecido?
Supõe-se que houve
aceitação, durante algum
tempo, da doutrina
reencarnacionista e que
a imperatriz Teodora
tenha influenciado o
Imperador Justiniano
(527-565 d.C.) para
eliminar da Igreja essa
crença. No entanto, a
história não acontece
por acidentes ou
caprichos individuais,
sem que haja uma
ideologia subjacente a
lhe dar sustentação.
Justiniano e a
divinização de Jesus
Nesse sentido, essa
suposição sobre a
influência da imperatriz
pode ser apenas parte da
verdade. Por um lado,
Teodora[5]
era movida pela ambição
obsessiva de que
Justiniano expandisse
seu domínio sobre todo o
Mediterrâneo oriental.
Essa era sua maior
preocupação. Por outro
lado, o imperador sentia
uma grande motivação por
questões teológicas, o
que não era do interesse
de Teodora.
Historicamente, foi
Justiniano o principal
articulador da
divinização de Jesus
pela Igreja.
Adicionalmente, a noção
de uma única vida iria
favorecer o poder do
clero sobre os fiéis e,
consequentemente, a
maior entrada de
recursos. Na visão de
Justiniano, tal
estratégia aumentaria o
seu controle sobre os
bens da Igreja,
facilitando o uso do
pecúlio para as
campanhas de conquistas.
Seu lema “Um Estado, uma
lei, uma igreja”
representa a síntese
dessa visão e explica
seu empenho na
convocação de concílios
e ditames teológicos.
Portanto, a noção da
reencarnação foi
excluída, menos por
imposição de Teodora e
mais por estratégia
política. Justiniano
faleceu no ano de 565
(d.C.) e, mesmo com o
império em decadência, a
Igreja continuou a
aumentar sua riqueza e
seu poder.
A perspectiva
espiritualista no mundo
é anterior à
materialista. Ainda que
já existissem ateístas
desde a época anterior a
Jesus, as ideias
filosóficas
materialistas ganharam
destaque com os
pré-socráticos, como
Demócrito, Leucipo e
Epicuro. Contudo, o
materialismo, enquanto
escola filosófica,
ganhou adeptos e status
a partir do século XVI,
com Leibniz[6].
O Reino de Deus está
dentro de cada um?
Não há dúvida de que,
até o início da Idade
Média, era mais fácil
aceitar a noção de Deus
e da imortalidade da
alma, do que uma visão
materialista oposta. E
isso, por um lado,
devido à dificuldade de
entendimento dos
processos de nascimento
e morte e, por outro,
pelo fato de as leis que
regem o Universo serem
ininteligíveis, mesmo
para a grande maioria
dos pensadores. Além
disso, sob essas crenças
vicejavam templos e
organizações
sacerdotais, cujo poder
ultrapassava o âmbito da
religiosidade. A
intimidade com um
Criador, que concedia
aos sacerdotes a decisão
sobre quem deveria ser
salvo, fortalecia o
poder religioso e criava
uma cultura de submissão
e medo. A ideia
de Jesus de que o
Reino de Deus está
dentro de cada um,
podendo ser implantado
no mundo, e não alhures,
foi reinterpretada na
perspectiva de um
julgamento futuro. O
resultado favorável, em
tal julgamento, dependia
da fidelidade aos dogmas
e da mediação clerical,
o que exigia poucos
esforços de todos, fiéis
e sacerdotes. A
reencarnação, como um
processo, já não tinha a
mínima condição de
aceitação, e a doutrina
da única existência
estava, pois,
consolidada de acordo
com a noção de um Jesus
“Salvador”. Como que
referendando essa
posição, disseminou-se,
também, a doutrina da
mediação pelos santos,
ou por Maria, dubiamente
alçada à posição de mãe
do próprio Deus.
Salvacionismo versus
Evolucionismo
Pode-se inferir,
portanto, que as
doutrinas de única
existência e de
pluralidade das
existências têm como
base dois paradigmas
culturais diferenciados.
O primeiro, mais antigo,
pode ser denominado de
Salvacionismo. O
segundo, que se opõe à
noção salvacionista,
pode ser chamado de
Evolucionismo.
Paradigmas culturais são
conjuntos de ideias e
normas que orientam
crenças, valores,
sentimentos e
comportamentos. Um
paradigma só entra em
declínio quando outro
responde, com melhor
propriedade, às dúvidas
e questões presentes. Ao
longo de sua jornada no
planeta, o homem criou
mitos e crenças que, de
alguma maneira, lhe
explicavam o Universo,
acalmavam suas dúvidas
sobre problemas de
difícil compreensão e
abrandavam seus medos e
angústias.
Várias emoções humanas
atuam no sentido da
sobrevivência e da
evolução. Entretanto, o
medo está relacionado à
conservação, sendo o
elemento base do
paradigma salvacionista,
onde o medo é acentuado
e prevalece à busca da
segurança, via proteção
de um poder maior. A
renúncia ao poder de
pensar e decidir
favorece a prática da
submissão e da adulação
aos mais fortes. A
história da saga humana
evidencia que o líder,
para se fortalecer,
incentiva a adulação a
si e aos ídolos, que
passam a representá-lo.
Alguns dos ídolos
primitivos foram
idealizados como figuras
bizarras, que
despertavam temores
inconscientes, mas uma
vez subornados por
rituais, se
transformariam em
protetores. Enfim, um
poder com o qual o homem
poderia contar, contra
as forças destrutivas
ignoradas.
Com o salvacionismo o
poder do clero aumentou
A sedução e a adulação
permanecem até hoje, e
também o homem moderno
se esforça por seduzir
seus deuses ou aqueles
que os representam, por
exemplo, o dinheiro, a
beleza, a força... Tal
jogo não se restringe
mais ao campo da
religiosidade: é
generalizado para as
figuras midiáticas, a
política, os negócios e
as armas. E assim
continuará enquanto
houver prevalência do
paradigma salvacionista
em nossa cultura
religiosa.
Com o salvacionismo, o
poder do clero sobre as
consciências aumentou
consideravelmente. Daí,
a proibição do
intercâmbio com o mundo
espiritual era uma
providência calculada e
necessária para evitar
questionamento à
autoridade sacerdotal.
Além de tudo, a
aceitação da comunicação
com os mortos poderia
colocar em dúvida alguns
dos dogmas estabelecidos
pelos teólogos, por
exemplo, o das penas
eternas.
Aproximadamente no ano
300 (d.C.) o clero já
estava bastante
organizado, tendo o
bispado fortalecido seu
poder na hierarquia da
Igreja. Em consequência,
o uso de privilégios
principescos por parte
dos bispos era aceito
quase sem oposição. A
subserviência interna
dos frades e párocos e
os conchavos e alianças
do clero, em geral, com
reis e imperadores se
transformaram em prática
comum. Portanto, a
aceitação da doutrina de
uma única existência, e
a consequente rejeição
da noção de
reencarnação, não
ocorreu devido ao
capricho de uma
imperatriz, nem foi
resultante de uma opção
filosófico-teológica,
mas, sim, uma estratégia
política, fortalecendo a
ordem e o poder
estabelecidos. Já no
século IV, além da
introdução do dogma do
pecado original, se deu
a conversão do Império
Romano ao catolicismo.
Estava, pois,
estabelecida a
supremacia de uma
Igreja, a católica,
sobre as demais e a sua
cumplicidade com o poder
temporal[7].
Do paradigma
evolucionista advém o
medo
A doutrina de uma única
existência, ainda que
deixasse a noção de um
Criador em situação
delicada, pois é
indefensável em termos
de lógica sobre alguns
de seus atributos,
favorece, e muito, o
poder dos clérigos. Ao
subordinar o futuro da
alma ao seu controle, a
Igreja desenvolveu duas
ações que se
complementam: o
fortalecimento de sua
autoridade e a
compra/venda da
salvação. É pouco
provável que isso
pudesse ter acontecido,
caso a pluralidade das
existências fosse
aceita, como pode ser
verificado, por exemplo,
no Budismo. Na
perspectiva
evolucionista, Jesus
seria aceito como um
modelo evoluído, com
missão educativa em
relação à humanidade.
Tal missão Lhe foi
outorgada por Deus, seu
pai e nosso pai. Ter
alguém que auxilia o
homem em sua caminhada
evolutiva é muito
diferente de ter um
salvador. Do paradigma
evolucionista decorre
uma liberdade difícil de
ser aceita, pois exige
outra maneira de encarar
a vida. Ela produz medo,
pois o homem se vê
responsável pelo seu
destino presente e
futuro. Quando, nesse
processo, o indivíduo
começa a intuir que deve
se avaliar e superar sua
condição espiritual
presente, seu medo pode
aumentar a ponto de
gerar conflito entre uma
ou outra posição.
Entretanto, há uma fase
de seu desenvolvimento
da qual não consegue
mais retornar aos bons
tempos da crença em um
Salvador. Nesse caso,
ele deve enfrentar
também os seus receios e
precisa compreender que
essa é uma experiência
solitária, mas que, no
entorno, ele pode contar
com a solidariedade de
muitos Espíritos (nos
dois planos) que vivem
ou viveram condição
semelhante e esperam uma
oportunidade para
ajudá-lo.
[1]
Kardec, Allan. O
Livro dos
Espíritos. IDE:
Araras (SP),
2002.
[2]
Wikipedia.
Acesso em 7 de
junho de 2015
[3]
Ver Stevenson,
I. Vinte casos
sugestivos de
reencarnação.
Editora Vida &
Consciência. São
Paulo
[4]
DovBer Pinson.
Reencarnação e
Judaísmo. São
Paulo (SP):
Maayanoti, 2015.
[5]
Wikipedia.
Acesso em 21 de
junho de 2015
[6]
Wikipedia.Acesso
em 28 de junho
de 2015.
[7]
Emmanuel,
Francisco
Cândido
Xavier(1939). A
Caminho da Luz.
Brasília (DF):
FEB.