O Modelo Bioético
Espírita deve ser
ousado, emblemático, um
verdadeiro divisor
de águas!
A Dra. Angélica Bogatzky
Ribeiro (foto),
médica ginecologista,
mestre em Bioética e
membro da Associação
Médico-Espírita de
Santos, nos traz
profundas reflexões
sobre a inserção da
espiritualidade para a
bioética. Engatinhando
em pesquisas e estudos,
o referencial da
espiritualidade ainda é
tímido, porém encontra
um vasto campo a ser
explorado, como podemos
conferir na entrevista
abaixo.
É possível delinear um
Modelo Bioético
Espírita?
É claro que sim, muito
embora, a meu ver, para
que exista essa
delineação - uma
intenção de se
aprofundar as questões
bioéticas sob o dogma
espírita – faz-se
necessário e urgente
compreender, de fato, o
que é a Bioética, por
que surgiu e qual sua
finalidade, para então
buscarmos, a partir do
vislumbre de seu fim
(que nada mais é que o
Bem Comum), o meio em
que se deve trilhar esse
movimento desafiante e
belíssimo, que ousa
surpreender o cientista
com questionamentos dos
mais fundamentais:
-
Por que a Ciência?
Para quê o seu
desenvolvimento?
Quais os seus
limites éticos?
-
Pode e deve o Homem
intervir e
interferir, até
mesmo de forma
irreversível, sobre
a Vida? O quanto
cabe ao Homem essa
intervenção?
-
O Homem deve algum
respeito à Natureza?
A seu próximo? A
outras formas de
vida? Ao planeta?
Quem determina
conceitual e
filosoficamente o
que seria esse
respeito?
-
É dever do Homem,
avaliar as
consequências de
suas ações?
-
O que é, afinal, o
Bem Comum?
Além disso, um Modelo
Bioético Espírita deve
ousar estimular a
consciência humana a
buscar sua identificação
com o Criador, incitar o
encontro do Homem
consigo mesmo: o ser
essencialmente
espiritual, imortal, em
evolução, que carrega em
si a fagulha divina que
lhe dá vida,
consciência, expressão,
criatividade e que
estagia temporariamente
no corpo de carne, sob
auspicia proteção da
Natureza em toda a sua
expressão terrena: vida
que se movimenta na
coletividade.
O Modelo Bioético
Espírita deve ser
ousado, emblemático, um
verdadeiro divisor de
águas! Deve provocar um
novo pensamento,
aprofundar a reflexão,
trazer, de forma clara,
coerente e destituída de
preconceitos, a questão
do espírito imortal, de
sua relação com a
matéria, das relações
entre o mundo corporal e
o mundo invisível além
da questão fundamental
da reencarnação e da
finalidade ética da
vida. Deve ser um modelo
holístico, incluir o
micro e o macrocosmo em
que nos movimentamos,
seja em sua forma
material, seja em
espírito.
Quais as diferenças
entre os paradigmas
utilitaristas e
espiritualistas na
reflexão Bioética?
As escolas bioéticas
vigentes na atualidade
são basicamente duas: as
anglo-americanas,
essencialmente
materialistas,
inspiradas na tradição
político-filosófico
americana do
liberalismo, na defesa
dos direitos e da
propriedade dos
indivíduos, cujos
modelos tendem a
desenvolver uma
normatização da ação,
que caracteriza uma
moral, em que a pessoa
humana é
predominantemente tomada
como ser racional dotado
de vontade própria e
realizando-se em sua
liberdade; e as escolas
europeias continentais,
cuja essência filosófica
dominante está baseada
em sua tradição
fenomenológica e
hermenêutica e sofre
influência direta do
existencialismo, que
propõe a questão da
subjetividade e do
sujeito enquanto
consciência.
Assim, dois paradigmas
totalmente diferentes,
paralelos, compõem os
principais Modelos
Bioéticos atuais. Um
modelo mais pragmático e
utilitarista, que tende
a distinguir a Pessoa
Humana do Ser Humano,
conceituando como pessoa
humana apenas aqueles
seres humanos que tenham
consciência de si
mesmos, com capacidade
autonômica preservada.
Este modelo reduz a
pessoa humana à sua
capacidade de pensar, se
expressar e decidir,
deliberar sobre questões
éticas que envolvam a
sua própria vida. Nesse
Modelo Libertário,
proposto em 1989 por
Tristam Engelhardt, o
Princípio Bioético da
Autonomia assume valor
extremo na Bioética
Principialista,
sobrepujando os outros
princípios, da
Beneficência, da Não
Maleficência e da
Justiça, sendo
imprescindível, nessa
interpretação dos
princípios, que a
autonomia do indivíduo
prevaleça em qualquer
questão que envolva o
seu corpo ou necessite
decisões que envolvam a
sua vida. A ausência de
consciência passa a ser,
por aqueles que defendem
esse modelo bioético
particular, um argumento
utilizado para
descaracterizar algumas
fases da vida humana
como vida de pessoas
humanas, como nas fases
de vida embrionária e
fetal ou naquelas
pessoas com deficiência
mental e nos casos de
perda do vigor da
excelência cognitiva,
como em alguns casos de
terminalidade. Se não se
é uma pessoa humana, em
tese, o ser humano
poderia ser descartado
(como no Utilitarismo,
só tem valor quem é
considerado útil).
E o modelo personalista,
no que difere?
O Modelo Personalista
busca fundamentar a
Bioética na pessoa
humana, agora não mais
caracterizada pelo seu
grau de consciência, mas
sob o pressuposto do
respeito ontológico à
estrutura do próprio
homem. Aqui, a pessoa
humana é considerada sob
uma perspectiva
metafísica do ser, pelo
profundo significado de
sua existência e
realidade, “um ser que
tem sua essência una,
constituída por uma
corporeidade animada por
uma estrutura espiritual
que recebeu uma
existência singular e
única e que por isso
postula um Criador
[...]; essa essência que
designa a transcendência
do homem sobre o mundo
constitui sua dignidade,
e a atuação de sua
essência, conhecida
também como natureza,
designa o seu bem,
requer sua virtude”,
segundo Elio Sgreccia,
seu principal
representante. A partir
dessa fundamentação da
Bioética considerando a
pessoa humana em sua
essência e colocando-a
como ponto principal de
toda a Bioética, foram
definidos princípios
para salvaguardarem a
própria pessoa humana em
uma reflexão aprofundada
de eventuais dilemas
éticos na prática
clínica: o princípio da
Defesa da Vida; o
princípio da Liberdade e
Responsabilidade; o
princípio Terapêutico; o
princípio da
Sociabilidade e da
Subsidiariedade.
Fica claro, para o
bioeticista espírita,
que os dois principais
modelos bioéticos
vigentes na atualidade
são insuficientes para
uma reflexão aprofundada
acerca da natureza
humana e da relação do
homem consigo mesmo, com
o outro e com o planeta.
Ambos os paradigmas
apresentados são
egocêntricos e não
parecem se preocupar em
abarcar as diversas
questões bioéticas da
atualidade e que
deveriam ser discutidas
profundamente não só
pelas academias, mas por
toda a Sociedade, e que
interferem sobremaneira
e diretamente na área da
Biomedicina, como a
escassez de alimentos e
da água, a falta de
saneamento básico, o
lixo mundial, a
sustentabilidade do
planeta, o respeito com
os animais e as plantas,
a resistência
antibiótica, a paz entre
os homens, dentre tantas
outras. Logicamente que
nos cabe, como ponto
inicial, repelir
completamente a noção
reducionista e absurda
do conceito de pessoa
humana implantado pelos
modelos mais pragmáticos
e materialistas, que não
têm fundamentação nem
científica e nem
filosófica, de destituir
o direito à dignidade à
pessoa humana, seja em
qual condição se
encontre, como se todos
nós, ainda que
destituídos
momentaneamente da
capacidade consciente de
viver, não trouxéssemos
latente em nossas almas
o desejo de amar e ser
amados, a possibilidade
de rir, se encantar,
sofre ou chorar, seja de
dor ou de emoção. Ainda
que o Modelo
Personalista seja
importante por fazer
frente e tentar combater
conceitualmente o Modelo
Libertário de Engelhardt
– e isso já mostra o
valor imenso desse
Modelo de reflexão
bioética – ele está
muito aquém do
conhecimento e das
reflexões contidos nas
obras de Kardec,
verdadeiro compêndio
bioético, que não por
acaso traz a questão
fundamental de nossas
vidas já na primeira
linha de suas
considerações,
remetendo-nos à pergunta
magnânima sobre Deus
logo no início de O
Livro dos Espíritos.
Os valores morais têm
espaço na Ciência atual?
Eu diria que não somente
têm espaço como é um
anseio, não apenas dos
que fazem Ciência, mas
de todos os que, já
tendo conquistado um
mínimo de consciência
cívica, usufruam de seu
avanço. Aliás, foi
justamente a percepção
de sua falta, a falta da
ética no avanço
científico, ou de sua
necessidade, o que de
fato levou ao surgimento
desse movimento
extraordinário que é a
própria Bioética.
Resta saber se o Homem
do futuro – o ser
espiritual que busca os
altos fins de sua
existência e que se
utiliza do avanço
tecnológico para o
progresso coletivo da
Humanidade – conseguirá
superar o Homem egoico e
materialista do
presente, ainda muito
limitado à sua
vestimenta física – esse
mesmo que existe um
pouco mais ou um pouco
menos em cada um de nós
e que não suporta sofrer
nem não ter, sempre
reduzindo a sua
capacidade de amar às
necessidades de um
prazer tanto momentâneo
quanto fugaz, que ilude
os sentidos e lhe
preenche de vazios
existenciais,
outorgando-lhe
verdadeiro embaraço
frente à percepção
constante de sua
finitude física.
Descrendo de qualquer
futuro, não consegue
comprometer-se
eticamente com a
Humanidade que lhe
acompanha os passos.
O pesquisador ou
cientista encontra
resistência caso tente
inserir a
espiritualidade nas
questões bioéticas
atuais?
Desde que por
Espiritualidade se
entenda uma entidade
filosófica ou religiosa,
que traz suporte
psicológico benéfico
para uma situação de
dor, não, não encontra
resistência. Pelo
contrário, o tema
Espiritualidade, nessa
semântica essencialmente
psicológica, que
deliberadamente ignora
seu profundo significado
filosófico e religioso,
está em moda nas rodas
inclusive científicas
daqueles que discursam
sobre a aplicabilidade
da Bioética na
Biomedicina, sendo
tratado até com certa
reverência, por trazer
avanços práticos
importantes na questão
da Humanização e da
qualidade do cuidado com
o paciente e seus
familiares, ao
incorporar a crença
particular de cada um
como ferramenta útil
para alívio, harmonia e
equilíbrio espiritual
daquele que sofre.
Porém, quando se entende
por Espiritualidade o
movimento real de algo
que vivifica a matéria e
lhe dá significado;
quando se entende por
espiritualidade a
ampliação de
consciência, ou
consciência não local;
quando se explica, pela
espiritualidade, o
mecanismo da vida, seu
determinismo e a
construção da própria
individualidade pelo
livre arbítrio, sim,
existe enorme
resistência. Quando
espiritualidade
significa espírito
imortal, imortalidade de
almas, comunicação e
evolução entre mundos,
reencarnação, lei de
ação e reação, sim,
existe absoluta
resistência. A
Espiritualidade que é
aceita, na atualidade,
como um referencial
bioético, é aquela
representada pelo
conceito mais
superficial e infantil
de sua realidade.
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