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Brasil
Ano 9 - N° 439 - 8 de Novembro de 2015
GIOVANA CAMPOS
giovana@ccbeunet.br
Santos, SP
(Brasil)
 
 

O Modelo Bioético Espírita deve ser ousado, emblemático, um verdadeiro divisor
de águas!

 
A Dra. Angélica Bogatzky Ribeiro (foto), médica ginecologista, mestre em Bioética e membro da Associação Médico-Espírita de Santos, nos traz profundas reflexões sobre a inserção da espiritualidade para a bioética. Engatinhando em pesquisas e estudos, o referencial da espiritualidade ainda é tímido, porém encontra um vasto campo a ser explorado, como podemos conferir na entrevista abaixo.

 

É possível delinear um Modelo Bioético Espírita?

É claro que sim, muito embora, a meu ver, para que exista essa delineação - uma intenção de se aprofundar as questões bioéticas sob o dogma espírita – faz-se necessário e urgente compreender, de fato, o que é a Bioética, por que surgiu e qual sua finalidade, para então buscarmos, a partir do vislumbre de seu fim (que nada mais é que o Bem Comum), o meio em que se deve trilhar esse movimento desafiante e belíssimo, que ousa surpreender o cientista com questionamentos dos mais fundamentais:

  • Por que a Ciência? Para quê o seu desenvolvimento? Quais os seus limites éticos?

  • Pode e deve o Homem intervir e interferir, até mesmo de forma irreversível, sobre a Vida? O quanto cabe ao Homem essa intervenção?

  • O Homem deve algum respeito à Natureza? A seu próximo? A outras formas de vida? Ao planeta? Quem determina conceitual e filosoficamente o que seria esse respeito?

  • É dever do Homem, avaliar as consequências de suas ações?

  • O que é, afinal, o Bem Comum?  

Além disso, um Modelo Bioético Espírita deve ousar estimular a consciência humana a buscar sua identificação com o Criador, incitar o encontro do Homem consigo mesmo: o ser essencialmente espiritual, imortal, em evolução, que carrega em si a fagulha divina que lhe dá vida, consciência, expressão, criatividade e que estagia temporariamente no corpo de carne, sob auspicia proteção da Natureza em toda a sua expressão terrena: vida que se movimenta na coletividade.

O Modelo Bioético Espírita deve ser ousado, emblemático, um verdadeiro divisor de águas! Deve provocar um novo pensamento, aprofundar a reflexão, trazer, de forma clara, coerente e destituída de preconceitos, a questão do espírito imortal, de sua relação com a matéria, das relações entre o mundo corporal e o mundo invisível além da questão fundamental da reencarnação e da finalidade ética da vida. Deve ser um modelo holístico, incluir o micro e o macrocosmo em que nos movimentamos, seja em sua forma material, seja em espírito.  

Quais as diferenças entre os paradigmas utilitaristas e espiritualistas na reflexão Bioética?

As escolas bioéticas vigentes na atualidade são basicamente duas: as anglo-americanas, essencialmente materialistas, inspiradas na tradição político-filosófico americana do liberalismo, na defesa dos direitos e da propriedade dos indivíduos, cujos modelos tendem a desenvolver uma normatização da ação, que caracteriza uma moral, em que a pessoa humana é predominantemente tomada como ser racional dotado de vontade própria e realizando-se em sua liberdade; e as escolas europeias continentais, cuja essência filosófica dominante está baseada em sua tradição fenomenológica e hermenêutica e sofre influência direta do existencialismo, que propõe a questão da subjetividade e do sujeito enquanto consciência.

Assim, dois paradigmas totalmente diferentes, paralelos, compõem os principais Modelos Bioéticos atuais. Um modelo mais pragmático e utilitarista, que tende a distinguir a Pessoa Humana do Ser Humano, conceituando como pessoa humana apenas aqueles seres humanos que tenham consciência de si mesmos, com capacidade autonômica preservada. Este modelo reduz a pessoa humana à sua capacidade de pensar, se expressar e decidir, deliberar sobre questões éticas que envolvam a sua própria vida. Nesse Modelo Libertário, proposto em 1989 por Tristam Engelhardt, o Princípio Bioético da Autonomia assume valor extremo na Bioética Principialista, sobrepujando os outros princípios, da Beneficência, da Não Maleficência e da Justiça, sendo imprescindível, nessa interpretação dos princípios, que a autonomia do indivíduo prevaleça em qualquer questão que envolva o seu corpo ou necessite decisões que envolvam a sua vida. A ausência de consciência passa a ser, por aqueles que defendem esse modelo bioético particular, um argumento utilizado para descaracterizar algumas fases da vida humana como vida de pessoas humanas, como nas fases de vida embrionária e fetal ou naquelas pessoas com deficiência mental e nos casos de perda do vigor da excelência cognitiva, como em alguns casos de terminalidade. Se não se é uma pessoa humana, em tese, o ser humano poderia ser descartado (como no Utilitarismo, só tem valor quem é considerado útil).

E o modelo personalista, no que difere?

O Modelo Personalista busca fundamentar a Bioética na pessoa humana, agora não mais caracterizada pelo seu grau de consciência, mas sob o pressuposto do respeito ontológico à estrutura do próprio homem. Aqui, a pessoa humana é considerada sob uma perspectiva metafísica do ser, pelo profundo significado de sua existência e realidade, “um ser que tem sua essência una, constituída por uma corporeidade animada por uma estrutura espiritual que recebeu uma existência singular e única e que por isso postula um Criador [...]; essa essência que designa a transcendência do homem sobre o mundo constitui sua dignidade, e a atuação de sua essência, conhecida também como natureza, designa o seu bem, requer sua virtude”, segundo Elio Sgreccia, seu principal representante. A partir dessa fundamentação da Bioética considerando a pessoa humana em sua essência e colocando-a como ponto principal de toda a Bioética, foram definidos princípios para salvaguardarem a própria pessoa humana em uma reflexão aprofundada de eventuais dilemas éticos na prática clínica: o princípio da Defesa da Vida; o princípio da Liberdade e Responsabilidade; o princípio Terapêutico; o princípio da Sociabilidade e da Subsidiariedade.

Fica claro, para o bioeticista espírita, que os dois principais modelos bioéticos vigentes na atualidade são insuficientes para uma reflexão aprofundada acerca da natureza humana e da relação do homem consigo mesmo, com o outro e com o planeta. Ambos os paradigmas apresentados são egocêntricos e não parecem se preocupar em abarcar as diversas questões bioéticas da atualidade e que deveriam ser discutidas profundamente não só pelas academias, mas por toda a Sociedade, e que interferem sobremaneira e diretamente na área da Biomedicina, como a escassez de alimentos e da água, a falta de saneamento básico, o lixo mundial, a sustentabilidade do planeta, o respeito com os animais e as plantas, a resistência antibiótica, a paz entre os homens, dentre tantas outras. Logicamente que nos cabe, como ponto inicial, repelir completamente a noção reducionista e absurda do conceito de pessoa humana implantado pelos modelos mais pragmáticos e materialistas, que não têm fundamentação nem científica e nem filosófica, de destituir o direito à dignidade à pessoa humana, seja em qual condição se encontre, como se todos nós, ainda que destituídos momentaneamente da capacidade consciente de viver, não trouxéssemos latente em nossas almas o desejo de amar e ser amados, a possibilidade de rir, se encantar, sofre ou chorar, seja de dor ou de emoção. Ainda que o Modelo Personalista seja importante por fazer frente e tentar combater conceitualmente o Modelo Libertário de Engelhardt – e isso já mostra o valor imenso desse Modelo de reflexão bioética – ele está muito aquém do conhecimento e das reflexões contidos nas obras de Kardec, verdadeiro compêndio bioético, que não por acaso traz a questão fundamental de nossas vidas já na primeira linha de suas considerações, remetendo-nos à pergunta magnânima sobre Deus logo no início de O Livro dos Espíritos.

Os valores morais têm espaço na Ciência atual?

Eu diria que não somente têm espaço como é um anseio, não apenas dos que fazem Ciência, mas de todos os que, já tendo conquistado um mínimo de consciência cívica, usufruam de seu avanço. Aliás, foi justamente a percepção de sua falta, a falta da ética no avanço científico, ou de sua necessidade, o que de fato levou ao surgimento desse movimento extraordinário que é a própria Bioética.

Resta saber se o Homem do futuro – o ser espiritual que busca os altos fins de sua existência e que se utiliza do avanço tecnológico para o progresso coletivo da Humanidade – conseguirá superar o Homem egoico e materialista do presente, ainda muito limitado à sua vestimenta física – esse mesmo que existe um pouco mais ou um pouco menos em cada um de nós e que não suporta sofrer nem não ter, sempre reduzindo a sua capacidade de amar às necessidades de um prazer tanto momentâneo quanto fugaz, que ilude os sentidos e lhe preenche de vazios existenciais, outorgando-lhe verdadeiro embaraço frente à percepção constante de sua finitude física. Descrendo de qualquer futuro, não consegue comprometer-se eticamente com a Humanidade que lhe acompanha os passos.  

O pesquisador ou cientista encontra resistência caso tente inserir a espiritualidade nas questões bioéticas atuais?

Desde que por Espiritualidade se entenda uma entidade filosófica ou religiosa, que traz suporte psicológico benéfico para uma situação de dor, não, não encontra resistência. Pelo contrário, o tema Espiritualidade, nessa semântica essencialmente psicológica, que deliberadamente ignora seu profundo significado filosófico e religioso, está em moda nas rodas inclusive científicas daqueles que discursam sobre a aplicabilidade da Bioética na Biomedicina, sendo tratado até com certa reverência, por trazer avanços práticos importantes na questão da Humanização e da qualidade do cuidado com o paciente e seus familiares, ao incorporar a crença particular de cada um como ferramenta útil para alívio, harmonia e equilíbrio espiritual daquele que sofre.

Porém, quando se entende por Espiritualidade o movimento real de algo que vivifica a matéria e lhe dá significado; quando se entende por espiritualidade a ampliação de consciência, ou consciência não local; quando se explica, pela espiritualidade, o mecanismo da vida, seu determinismo e a construção da própria individualidade pelo livre arbítrio, sim, existe enorme resistência. Quando espiritualidade significa espírito imortal, imortalidade de almas, comunicação e evolução entre mundos, reencarnação, lei de ação e reação, sim, existe absoluta resistência. A Espiritualidade que é aceita, na atualidade, como um referencial bioético, é aquela representada pelo conceito mais superficial e infantil de sua realidade.




 


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O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita