Ter fé na própria descrença
Uma reportagem da revista VEJA, edição 2449, páginas 84 a 87, intitulada Qual é a Origem da Fé, discute as razões de umas pessoas terem fé e outras não.
Como um ingrediente que não poderia faltar, um biólogo americano, ateu evidentemente, sustenta que a fé evolui com o homem porque confere vantagens àqueles que a desenvolvem. A que vantagens ele estaria se referindo, a reportagem não deixou claro.
Outro biólogo americano, coordenador do setor de genética do National Cancer Institute, afirmou que a fé em Deus estaria em um gene, no “gene de Deus”. Ao avaliar o grau de espiritualidade de 1.000 adultos, descobriu uma coincidência: aqueles que tinham sentimento religioso compartilhavam o gene VMAT2. Até isso a genética já está mapeando! Quem sabe, um dia, o corrupto e corruptor também não sejam inocentes por serem vítimas de uma genética aleatória? Ou seja, retornaríamos ao velho e cômodo refrão de que o Espírito é forte, mas a carne é fraca! O corpo finito, instrumento do ser imortal, se imporia ao seu “comandante”. Soa-me assim como se fosse uma “reta torta”.
Também, segundo essa mesma reportagem, o rompimento entre ciência e religião ocorreu no século XVIII, na França, com o iluminismo, onde a razão e o progresso científico seriam um instrumento de emancipação do homem, pondo em xeque os dogmas cristãos. Creio que todo dogma já nasce em xeque por excluir a razão, com iluminismo ou não.
Mas gostaríamos de destacar o trecho final da reportagem: “Não há como explicar o inexplicável, o misterioso, possivelmente porque Deus talvez seja mesmo um conceito pelo qual medimos e aplacamos nossa dor. Lembre-se aqui o momento bíblico em que Jesus, no auge do sofrimento físico e psicológico, pergunta a Deus: 'Por que me abandonaste?'. Cristo morreu sem resposta à sua incerteza. Mas, em sua última frase dita ainda na cruz, retomou a força brutal da fé: 'Nas tuas mãos eu entrego meu espírito'. Jesus Cristo entregou tudo o que tinha a Deus. Até mesmo sua racionalidade”.
Fico procurando entender essa “certeza” quando afirmam categoricamente as palavras que Jesus teria dito em aramaico, passadas depois para o hebraico, grego e, finalmente, para o latim, através de muitas traduções e tradutores. Será que nessa composição do Novo Testamento (não vou nem entrar na discussão do Velho Testamento, para a coisa não ficar ainda mais complexa) a frase de que cada conto aumenta um ponto não ocorreu? Poderíamos até inverter: cada conto diminui um ponto. Sim, porque acrescentar ou retirar o que Jesus teria dito varia ao sabor dos interesses de cada época.
O que será que realmente teria dito e ensinado Jesus aos homens daquela época se não existia gravador e o que Ele disse não foi anotado prontamente? Será que ao passar do aramaico para o hebraico, as palavras encontravam correspondência rigorosa para que o verdadeiro sentido não fosse distorcido? O que dizer então quando as palavras Dele, do aramaico vieram para o grego? Haveria uma correspondência perfeita? E o que dizer, continuando nessa mesma linha de raciocínio, quando do grego foram traduzidas para o latim? A correspondência era absolutamente perfeita para que soubéssemos hoje exatamente o que teria dito Jesus? Nem um til ou um jota do que ensinou foram alterados intencionalmente ou não? Será que o trânsito das palavras em aramaico para a nossa realidade de hoje não sofreu nenhuma interferência através dos cérebros que teve que percorrer para chegar até nós?
Bendito gene da fé descoberto pelo biólogo, o tal de VMAT2! Essa fé é do tamanho de um grão de mostarda, pelo menos. Quem presenciou os últimos momentos de Jesus ao pé da cruz, além das mulheres a não ser João, um adolescente assustado com a brutalidade que presenciava em relação ao seu Mestre que só viera propor o amor incondicional entre os homens? Por que será que foram Mateus e Marcos que abordaram a frase que teria sido dita por Jesus, se lá não se encontravam, e não o próprio João, que estava presente naquela hora?
Será que foi Jesus quem perdeu a racionalidade naquela hora, ou somos nós que ainda não temos racionalidade suficiente para compreender toda a nossa irracionalidade?
Socorra-me, gene VMAT2!