Confiar e
aceitar:
reconhecendo
o
bem na dinâmica
da vida
“Nenhuma emoção
em si é
perigosa.
Disfuncional é
ficar ancorado
durante muito
tempo em algumas
delas, já que a
qualidade dos
sentimentos é ir
e vir, irromper
e
desvanecer-se.” –
Joan Garriga
Bacardi.
Segundo os
Vedas¹, a causa
primordial do
sofrimento
humano é a falta
de conhecimento
de quem somos,
na realidade. O
Espiritismo,
embora não
aponte uma causa
específica como
sendo a maior de
todas, considera
as questões do
orgulho e do
egoísmo² como
fonte de
sofrimento
(conforme dizia
Jesus), mas
entende também
que quando
reconhecemos
nossa porção
sagrada e o real
sentido da Vida,
tendemos a
abandonar vícios
antigos,
trocando-os por
hábitos
salutares, tais
como a
abnegação, o que
acaba por
corroborar com a
primeira ideia.
A questão é que
muitos vivem na
Terra como se
fossem apenas um
corpo, com suas
necessidades e
potencialidades
particulares,
quando em
verdade nossa
essência é a
parte imortal
desta fabulosa
combinação
chamada Eu.
Somos, portanto,
alma, com
mecanismos
mentais
específicos,
vivendo em
relação com o
meio, em um
tempo histórico,
numa determinada
cultura,
utilizando-nos
para isso de um
corpo formado
por um tipo de
matéria mais
densa, com seus
órgãos e
sistemas
complexos. Como
se vê, aquilo
que tomamos por
essencial
trata-se apenas
de veículo. O
condutor é a
alma, que
preexiste e
sobrevive à
morte física.
Sendo assim,
alguns indagam
por que vivemos
como se fôssemos
eternos no campo
físico, negando
a alma, se ao
longo de tantos
milênios temos a
informação de
que a realidade
é outra.
Por certo a
influência dos
sentidos é
enorme em nosso
psiquismo,
podendo nos
levar a esta e
outras confusões
existenciais,
mas é preciso
refletir a
respeito,
buscando “ver"
muito além das
aparências, para
então desvelar o
que já existia e
continuará
existindo: nossa
Individualidade
imortal,
potencialmente
Crística.
Dentro deste
contexto, estas
mesmas tradições
de Sabedoria
afirmam que a
Vida na Terra
nada mais é que
um campo de
experimentações
específicas que
visam ao
aprimoramento
desta alma,
através de
estímulos
ideais, de
acordo com seu
momento
evolutivo. Ou
seja, a dinâmica
da existência
possui uma
inteligência
soberana, capaz
de nos
impulsionar ao
progresso,
através de
imputs
pedagógicos, de
acordo com nossa
capacidade
individual e
coletiva. Ela
tende ao Bem,
portanto.
O que acontece é
que tais
estímulos nem
sempre são
bem-vistos ou
digeridos por
nós, justamente
porque evitamos
auscultar as
situações com os
olhos da alma. A
dor, por
exemplo, é um
dos recursos que
a vida
apresenta,
quando outros
não foram
suficientes para
nos fazer mudar
as disposições
equivocadas.
Chega firme,
muita vez sem
aviso prévio,
causando sustos
e
aborrecimentos.
Nunca para nos
destruir, embora
acreditemos
nisso.
Então, como
diminuir nossa
angústia a fim
de conseguirmos
perceber as
lições que ela
nos traz?
Rumi, o famoso
poeta da antiga
Pérsia, já dizia
que o remédio
para a dor é a
dor.³ Isso
significa que
quando olhamos
para ela com
honestidade e
boa vontade,
podemos aprender
aquilo que veio
nos ensinar,
evitando-a, mais
adiante. Afinal
a Vida não lança
mão de recursos
desnecessários.
E o que vemos
com frequência é
um desfilar de
muxoxos e
revoltas
múltiplas.
Desesperos,
maldições e
inconformações
que apenas
agravam o
quadro,
transformando a
dor em
sofrimento
amargo, de forte
intensidade e
longa duração.
Buda,
dissertando
sobre a questão
do sofrimento,
comentou acerca
da primeira da
segunda
flechas⁴, numa
analogia
bastante
interessante a
respeito da dor
causada por
alguma questão
alheia à nossa
vontade e a
forma como
depreendemos o
evento. O que
acontece é que,
segundo Sidartha
Gautama, os
desafios que a
vida se nos
apresenta são
como flechas
certeiras,
causam dores
específicas,
muita vez
passageiras,
circunstanciais.
Já a segunda
flecha
representa nossa
resistência a
estas primeiras.
Nós as criamos e
nos ferimos de
forma
desnecessária,
quando nos
revoltamos, nos
irritamos com as
demandas,
estendendo e
potencializando
a dor, fazendo
reverberar
inclusive em
outros que
convivem
conosco.
Joan Garriga
Bacardi,
psicólogo
espanhol, em seu
livro “Viver na
Alma”⁵,
esclarece que o
sofrimento se
assenta em uma
luta contra os
fatos, enquanto
a dor é uma
emoção natural,
humana e
congruente. Diz
ele que “Diante
da dor genuína,
da presença de
pessoas que
atravessam
verdadeiros
lutos, abre-se
espontaneamente
nos demais a
porta da
compaixão, da
humanidade e da
solidariedade. É
algo biológico.
Sentimos o
impulso natural
do caminhar ao
lado, acompanhar
e apoiar os
tristes e os que
se consomem de
tormento. Sem
dúvida, o
sofrimento é
outro assunto,
outro cantar. O
sofrimento tem
outras
conotações e,
muitas vezes,
desperta nos
demais o desejo
de
distanciamento”. (p.
115)
Isso porque o
sofrimento tende
a ser
manipulador,
egoísta por
parte de quem o
sente e
expressa.
Trata-se de
posição
existencial
edificada na
queixa, no
ressentimento,
no vitimismo. E
quando o
sofrimento toma
esta forma
deletéria, quase
nunca desperta a
compaixão
natural dos
demais, senão o
incômodo. Aliás,
como afirma o
próprio Garriga,
“já está mais
que superada a
ideia de que o
sofrimento
concede
direitos”.
(pg. 116)
A verdade é que,
quem consegue
integrar o
difícil,
atravessar seus
lutos, enriquece
a vida, se
transforma
positivamente,
elevando-se. Já
quem fica preso
aos gemidos,
olha tanto para
si mesmo que
seus olhos não
percebem os
demais e a
realidade da
vida.
Por certo a vida
nos convoca aos
desafios com
certa frequência,
então cabe-nos
questionar: Como
percebo esta
realidade? Que
atitude devo
tomar diante
desta demanda?
Como posso fazer
para minimizar
este impacto em
mim e nos
outros? Como
encontrar o
sentido para
esta dor que me
abala a alma e
assim aprender o
que me cabe
nesta
experiência?
Podemos pensar
que o desafio
talvez seja
gostar não
apenas do que
nos convém, o
que nos é
agradável ou
estimado, mas
desenvolver uma
confiança na
dinâmica da
vida, aceitando
suas propostas,
nem sempre
agradáveis,
coloridas.
Compreender que
não há outro
remédio,
assumindo nossa
pequenez diante
do Espírito
Criador, nos
rendendo ao que
é, sendo
humildes. Jesus
dizia: “Ofereça
a outra Face”, o
que significa:
se desfaça de
suas armas,
confia, entrega
e se entregue.
Deus se ocupa.
Ele sabe mais
que você.
Confiar e
Aceitar são,
portanto, verbos
que devem ser
trabalhados em
nosso campo
emocional.
Logicamente isso
não significa
uma postura
passiva ou de
desistência.
Será preciso
trabalhar e
alterar o
possível, usando
nosso
livre-arbítrio
com sabedoria.
Falamos aqui de
aceitarmos o que
não pode ser
alterado. O
passado, por
exemplo.
Apegar-se a
mágoas,
ressentimentos,
é reanimar o
momento da
ofensa,
relembrando-o
constantemente,
como se acabasse
de ocorrer, a
cada minuto.
Nossos corpos
sentem os
impactos desta
ancoragem
emocional,
ativando o
sistema límbico,
encharcando todo
o córtex
cerebral com
estes imputs
negativos,
reverberando nos
sistemas
endócrino e
nervoso
autônomo,
podendo promover
diversas
doenças. Nossa
imunidade cai,
permitindo se
alastrem vírus,
bactérias,
fungos e até
mesmo células
cancerígenas,
caso outras
variáveis
permitam seu
crescimento.
Faz-me recordar
querido
professor na
minha graduação
– um médico
muito lúcido e
didático – que
dizia que todos
os dias criamos
células
adoentadas.
Permiti-las
crescer e tomar
nosso corpo
depende, também,
da forma como
entendemos e
lidamos com a
Vida. Ou seja,
nossas mentes
são responsáveis
por praticamente
85% das doenças
que
desenvolvemos –
explicava.
A questão
central é que
estes dados
todos coincidem
exatamente com
as lições
trazidas pelas
Tradições de
Sabedoria.
Quando
aceitamos,
quando somos
humildes perante
a Vida, quando
aprendemos a
amar o que é, o
que somos e os
outros como são
(assim como
comenta Joan
Garriga Bacardi
na mesma obra),
vivemos uma vida
mais plena, com
relativa paz, em
harmonia com o
seu fluxo
sagrado,
pedagógico,
evolutivo. Sendo
assim, e a
partir de nós,
conforme
ensinava o
querido Gandhi⁶,
poderemos
transformar o
mundo, sendo a
mudança que
queremos ver
nele.
Referências:
1.
Denominam-se Vedas as
quatro obras,
compostas em um
idioma chamado
Sânscrito
Védico, de onde
se originou
posteriormente o
Sânscrito
Clássico.
Inicialmente os
Vedas eram
transmitidos
apenas de forma
oral. Existem
dúvidas quanto à
época em que
foram compostos,
mas aceita-se
que se trata de
pelo menos 2.000
a.C., ou antes.
2.
Ler em Obras
Póstumas,
Allan Kardec,
Parte I, o
capítulo “O
Egoísmo e o
Orgulho – Suas
Causas, Seus
Efeitos e Os
Meios de
Destruí-los”.
3.
Rumi, também
conhecido como
Jalãl ad-Din
Muhammad Balkhi,
era um místico,
teólogo e poeta
persa, do
sufismo. Viveu
no século XII.
Entre outras
lições, em suas
poesias dizia
que nossas almas
não pertencem a
este mundo, mas
apenas o corpo,
e que devemos
buscar mudar o
mundo, mudando a
nós mesmos.
4.
Ler a respeito
no livro “O
Cérebro de Buda”,
do
neurocientista
Rick Hanson,
editora Alaúde,
2012. Parte I,
Capítulo 3.
5.
Livro Viver
na Alma, editora
Saberes, 2011,
de Joan Garriga
Bacardi.