MARCUS VINICIUS
DE AZEVEDO BRAGA
acervobraga@gmail.com
Rio de Janeiro,
RJ (Brasil)
|
|
Santa ignorância
Os anais da história
ocidental falam de uma
figura ímpar, John Huss
(Husinec,
1369
-
Constança,
6 de julho
de
1415),
que consta como uma das
encarnações de Allan
Kardec e que pela sua
discordância com ações
da Igreja Católica, em
uma era de politicagens
e indulgências, foi
condenado à pena de
morte, executado pela
fogueira, ombreado com
tantos outros,
conhecidos e
desconhecidos, que
ousaram defender ideias
que hoje são
corriqueiras.
Narra a história também
que a lenha teimava em
não pegar fogo e, diante
desse problema, uma
idosa trouxe uma rama de
galhos secos para fazer
a fogueira pegar. Diante
de tanto esforço daquela
senhora, que buscava sua
salvação ao calá-lo pelo
fogo, Huss exclama uma
expressão que sobrevive
até os nossos dias: o
sancta simplicitas
(Ó santa
ignorância!).
Ao ler os jornais, ao
ouvir as conversas nos
coletivos, ao navegar
nas redes sociais, ecoa
na mente as palavras do
antecessor de Allan
Kardec. Vestidos de
mantos de religiosidade
dilapidamos a razão e o
bom senso, em situações
que não se circunscrevem
a outras religiões
apenas, na defesa de
situações que afrontam
ao mais elementar
humanismo, ou mesmo ao
bom senso e a ideias
hoje já aceitas de forma
pacífica na sociedade
científica.
Das peripécias em
relação a Darwin e seu
evolucionismo, a
explicações mágicas de
fenômenos já elucidados,
o misticismo ainda
assola as mentes,
recheado de medo e de
ignorância, descambando
para o absurdo e para a
superstição. Esquecemos
que o codificador era
chamado de “O bom senso
encarnado” e buscamos
simplificar coisas
complexas, mediunizando
fatos e aceitando tudo
que vem dos Espíritos,
sem crivo ou crítica.
Assim, de tudo achamos
uma mirabolante
explicação
reencarnacionista,
ignoramos descobertas da
ciência e queremos
adaptar a realidade ao
que entendemos como
obras sagradas, em um
revival do Tomismo
da Idade Média.
Endeusamos Espíritos,
tentando buscar um
maravilhoso que não nos
permite ver a beleza da
encarnação, com todos os
seus desafios. Fugimos
assim das bases do
Espiritismo, de como ele
surgiu e de um Kardec,
que, por pouco, também
não foi condenado por
suas ideias, diria
assim, revolucionárias.
Aliás, Jesus morreu na
cruz pelas suas ideias,
ainda que tenha sido
mais fácil para a
humanidade aceitar a
ideia de que ele foi à
cruz para nos salvar
(SIC).
A falta de estudos, o
desequilíbrio entre as
dimensões
ciência-filosofia-religião
do Espiritismo, a falta
de olharmos com bom
senso certas situações
que se apresentam, tudo
isso, regado a carência
de reflexão, nos leva a
situações que fogem à
lógica do Espiritismo
como legado por Allan
Kardec na tarefa da
codificação. Importamos
modelos, adaptamos
conceitos e ignoramos
que estes se explicam
pelo seu conteúdo
simbólico, mas não pelo
seu aspecto lógico.
Aceitamos assim meias
verdades e nos prendemos
à forma, ao idealizado,
escondidos do mundo
real, polarizando uma
pseudodisputa entre
ciência e religião,
colocando um galhinho na
fogueira dos pensadores,
pensando com isso matar
a realidade. A
verdadeira fé enfrenta a
razão em todas as épocas
da humanidade. Kardec
com maestria enlaçou a
religiosidade em bases
científicas, da razão,
trazendo ainda o aspecto
filosófico, no tripé
que, sustentado, nos
permite crer e saber,
seguir e saber por que,
e ainda, saber e se
permitir rever as
posições. Isso é um
fator de força à nossa
fé, sem dúvida.
Passados os tempos de
inquisição e condenações
pelo pensar e pelo crer,
ainda assistimos em
fogueiras reais e
virtuais a santa
ignorância atuar, com a
nossa dificuldade de
entender que às vezes
precisamos pensar fora
da caixa e que o
Espiritismo, como
doutrina libertadora de
consciências, nos traz
uma mensagem de fé que
se alimenta da razão,
preferindo o mundo como
ele é a se iludir com
fantasias diante de
nossos deveres como
Espíritos encarnados, em
relação ao mundo como
ele deve ser.
A cada dia, cientistas e
pensadores trazem novas
descobertas que
confrontam nossos
paradigmas e verdades,
como foi Huss na sua
época, na qual muitos
defendiam a Terra
redonda e girando ao
redor do sol, o que
rendeu algumas
condenações. Não podemos
tapar os ouvidos ao
trabalho sério dos
irmãos, como a
salvacionista idosa e
seu ramo de galhos.
Insta entendê-los como
novidades da criação
divina, escolhendo ser o
visionário John Huss,
que se perpetuou por
muitas de suas ideias.