Especial

por Lidia Tayane Nunes de Oliveira

O desafio do autoperdão

 

Em artigo veiculado pela plataforma UOL ViverBem[1] sob o título “Autoperdão: entenda por que é tão difícil desenvolvê-lo e seus benefícios”, a colaboradora Heloísa Noronha (2020) situa o perdão a si mesmo num patamar de dificuldade ainda maior que o perdão a outrem, contudo informa que é possível superar a dor e identifica as razões para fazê-lo, com o auxílio de profissionais da Psicologia. Esse empecilho de perdoar se justificaria por abranger sentimentos como decepção, rancor, frustração, raiva e mágoa, que podem ser trabalhados mediante fatores como maturidade, tempo e diálogo.

De forma similar, Rossandro Klinjey (2015), em seu livro intitulado Autoperdão: o aprendizado necessário[2], realiza um convite de apaziguamento interior por intermédio da elucidação do que é o perdão e da demonstração da importância do perdão e do autoperdão enquanto forma inadiável de prosseguimento com crescimento, e não somente com automatismo.

Noronha (2020) traz a contribuição de Silvia Cury Ismael, gerente de psicologia do HCor (Hospital do Coração) em São Paulo (SP), para explicar que o perdão é uma proposta de esquecimento do fato ocorrido e desligamento emocional daquele quem nos teria feito mal, enquanto o autoperdão estaria relacionado com a autoexigência diante dos equívocos que cometemos, porque a dificuldade de perdoar a si próprio estaria no reconhecimento de nossa falha, fraqueza ou incompetência.

Contudo, Klinjey (2015) desmistifica alguns mitos ao elencar o que não seria perdoar: “perdoar não é esquecer” (o que seria negar o aprendizado com a experiência); “perdoar não é diminuir, negar ou aprovar o equívoco” (porque o perdão também abrange confronto e repreensão para o estabelecimento da verdade); “perdoar não é permitir o erro” (senão, haveria conivência com a má conduta); “perdoar não é esperar um pedido de perdão” (porque não compete a ninguém impor condições para perdoar); “perdoar não é parar de sentir dor” (porque o perdão pode demandar sua continuidade, mas constitui libertação do ódio de quem a provocou); “perdoar não é negligenciar a Justiça” (porque esconder o mal praticado pode prejudicar outra pessoa); “perdoar não é confiar” (o tempo pode demonstrar que a pessoa mudou, mas a fraqueza pode ser comprovada); e “perdoar nem sempre é reconciliação” (porque ela depende de duas pessoas) (KLINJEY, 2015, p. 111-125).

Tendo por base O Livro dos Espíritos[3], é possível inferir que esse reconhecimento de nossa própria falta está ancorado na resposta à questão 621 formulada por Kardec (2013a, p. 297) sobre onde estaria a lei de Deus: “na consciência”. De modo complementar, os Espíritos, na questão 630 sobre como se pode distinguir o bem do mal, esclarecem que “fazer o bem é proceder de acordo com a Lei de Deus”, ao passo que fazer o mal “é infringi-la” (KARDEC, 2013a, p. 300). Dessa forma, é fácil compreender por que a felicidade, com relação à vida moral, além da fé no futuro, constitui “a consciência tranquila”, de acordo com a questão 922. Além do conhecimento das leis divinas estar gravado em nossa consciência, os Espíritos confirmam que “Jesus” é “o tipo mais perfeito que Deus tem oferecido ao homem, para lhe servir de guia e modelo”, nos termos da questão 625. Nesse quesito, Klinjey (2015) oferece reflexão na constatação de que só perdoa quem está machucado, porque é imaturo no acontecimento, portando Jesus não precisou perdoar porque ele não se magoou. Em nossa condição reencarnatória, por sua vez, o perdão e o autoperdão são aprendizados necessários.

Conforme resgata Noronha (2020), na observação feita por Natalia Novaes Pavani Araújo, psicóloga do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, situado também na capital paulista, a “culpa gera um sentimento ruim, que nos mobiliza a pedir perdão, seja a alguém ou a nós mesmos, e nos faz adotar uma nova postura". Ainda segundo Araújo, no cenário de demasiada autocrítica e sensibilidade à culpabilização, em vez de desempenhar o positivo mecanismo de aprendizagem por intermédio da reparação, a culpa teria a função de autoflagelo. A psicóloga Cristina Borsari (apud Noronha, 2020), membro do corpo clínico da Beneficência Portuguesa de São Paulo, acrescenta que o ciclo vicioso da culpa pode tirar a alegria de viver, podendo pavimentar o caminho para transtorno de ansiedade e até depressão, já a aceitação de que todos são passíveis de erros permite o abandono da vitimização e a responsabilização por atos e omissões. Sendo assim, a primeira medida para o autoperdão seria realizar “um exercício honesto de reflexão sobre o que realmente se deseja”, quando identificado “o desejo de seguir adiante, pode-se fazer uma lista de ações de reparação”, arremata Araújo (apud NORONHA, 2020).

Nos comentários constantes no item 4 do Capítulo XI de O Evangelho segundo o Espiritismo[4], Jesus nos ensinou como padrão de conduta amar o próximo como a si mesmo, o que “resume todos os deveres do homem para com o próximo” (KARDEC, 2013b, p. 154), inclusive o de perdoar quantas vezes for preciso. Conforme corrobora o artigo, o excesso de culpa pode nos levar à vitimização e à estagnação, enquanto a postura madura é a de responsabilização e enfrentamento das provas, o que pressupõe o exercício do perdão e do autoperdão. Não obstante, diariamente, esse chamamento ao perdão é realizado a todos nós, Klinjey (2015) conclui que nem todo dia conseguimos atendê-lo, sendo que podemos ir a passos de tartaruga ou de corredor: a escolha é nossa.

*Artigo participante do Concurso A Doutrina Explica 2023, promovido pelo Jornal Brasília Espírita em parceria com a revista eletrônica O Consolador  e a Web Rádio Estação da Luz.

 


[1] NORONHA, Heloísa. Autoperdão: entenda por que é tão difícil desenvolvê-lo e seus benefícios. UOL VivaBem, São Paulo, 28 jun. 2020. Equilíbrio. Clique aqui: <LINK>. Acesso em:  5 ago. 2023.

[2] KLINJEY, Rossandro. Autoperdão: o aprendizado necessário. 1. ed. Goiânia: FEEGO, 2015.

[3] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados por Allan Kardec. Tradução de Guillon Ribeiro. 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica). Brasília: FEB, 2013.

[4] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo: com explicações das máximas morais do Cristo em concordância com o Espiritismo e suas aplicações às diversas circunstâncias da vida. Tradução de Guillon Ribeiro da 3. ed. francesa, revista, corrigida e modificada pelo autor em 1866. 131. ed. 1. imp. (Edição Histórica). Brasília: FEB, 2013.

    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita