Especial

por Rogério Miguez

Justiça divina: nem céu nem inferno

 

Com o surgimento da terceira Revelação – a Doutrina Espírita -, finalmente, a Humanidade ficou face a face com a possibilidade de recostar a cabeça tranquilamente à noite e dormir pacificada, pois obteve a certeza de que Deus, o Pai de todos, é perfeitamente justo, imparcial, misericordioso, ou seja, nos ama incondicionalmente, sem exceções, não admitindo qualquer pecado como irremissível, pois Ele nunca se ofendeu conosco e jamais se ofenderá, apesar de muitos assim acreditarem. A ofensa é característica dos humanos ainda imperfeitos, incomodados com certas condutas alheias, na razão direta da dimensão de seu orgulho e vaidade. Com o passar do tempo, não nos ofenderemos mais, com ninguém: graças a Deus!

Havia muita incerteza sobre o cuidado de Deus endereçado a todas as suas criaturas. Muitos criam e, infelizmente, ainda creem, que Deus privilegia esta ou aquela religião, protege esse e não aquele país, atende este e não outro pedido em função da forma e de quem está orando, se magoa com certas atitudes de seus filhos e, diante destas situações, poderia encaminhá-los, eventualmente, após a morte, em função de certas condutas adotadas ao longo da existência, a regiões do espaço sideral caracterizadas por sofrimentos eternos – o inferno -ou para o céu, que nos dizeres de Emmanuel era uma:

[...] região deleitosa, em que Deus, teologicamente transformado em caprichoso patriarca, vivesse condecorando os filhos oportunistas que evidenciassem mais ampla inteligência, no campeonato da adulação.1

Certamente, o lúcido Emmanuel sabe que muitos acreditam que conforme agimos visando agradá-Lo, com presentes e oferendas, longas e intermináveis rezas, pelo uso de certos artefatos, enfeitando o nosso Templo com imagens, penduricalhos e toda a sorte de adereços materiais, ganhamos a Sua especial atenção e, como justa recompensa, Ele nos encaminharia para um local de infinitas benesses, onde poderíamos desfrutar, ao Seu lado, da eterna paz dos justos – o céu.

Graças a este mesmo Bom Deus, no primeiríssimo dia de agosto de 1865, em Paris, finalmente, houve a publicação da primeira edição da obra O Céu e o Inferno ou A justiça divina segundo o Espiritismo, de autoria de Allan Kardec. Um importantíssimo marco que no mês de agosto de 2025 comemorou 160 anos de lançamento. Esta obra compreende o desdobramento da quarta parte de O Livro dos Espíritos, que trata Das Esperanças e Consolações.

Este singular livro ainda é desconhecido das massas, pois o Espiritismo ainda é ignorado pela maioria e, precisamos ser honestos e dizer também que é relativamente desconhecido até mesmo pelos seguidores do Escolhido de Lyon, os espíritas.

Uma realidade difícil de ser entendida, pois, nesta obra, o autor explica em minuciosos detalhes, baseando-se nos informes e relatos dos Espíritos, sobre como funciona a justiça divina, em todas as suas nuances.

É um fato. O compêndio mais visitado pelos adeptos do Espiritismo é a terceira obra fundamental – O evangelho segundo o Espiritismo -, que ano passado, também festejou os seus 160 anos de publicação, mais precisamente em abril, pois veio a lume neste mesmo mês no ano de 1864.

Pode-se imaginar por qual razão a terceira obra que compõe o Espiritismo é a mais buscada. O sofrimento grassa nos quatro cantos do planeta e este livro fala exatamente das muitas aflições, veja-se, por exemplo, o quinto capítulo, que discorre sobre Bem-aventurados os aflitos. E mais, este livro revive os ensinamentos de Jesus à luz da razão, portanto, é de se perguntar: quem não tem interesse em, mais uma vez, escutar Jesus, agora sem nenhuma interferência das muitas incorreções e adulterações que foram feitos nos seus ensinos?

Assim, nada mais natural do que buscar informações e respostas às nossas incontáveis e, aparentemente, intermináveis mazelas naquelas páginas escritas com muita sabedoria, e com o poder de nos comunicar esperança em dias melhores, ainda neste orbe.

Desta forma, o conhecimento das páginas Evangélicas compondo essa terceira obra seria a principal razão desta busca, contudo, não se compreende por qual motivo O céu e o inferno não recebe também, igualmente, esta especial atenção? Este livro aborda, entre tantos temas importantes a questão da existência do céu e do inferno que nos interessa de perto, afinal, incontáveis vivem intrigados se serão contemplados, ao fim desta nova existência, com um lugar ao lado direito do Pai ou estarão destinados a continuar suas miseráveis vidas em regiões de sofrimentos atrozes, sem a possibilidade de lá sair, nem se houver o sincero arrependimento do pecador, característica do inferno como hoje ele é entendido e, principalmente, temido.

A quarta obra da Codificação em análise é, igualmente, um tratado sobre Esperanças e Consolações e, nos dizeres do autor, contempla, em sua primeira parte, intitulada Doutrina:

[...] o exame comparado das diversas crenças sobre o céu e o inferno, os anjos e os demônios, as penas e as recompensas futuras.2

Como se denota, são assuntos que nos interessam sobremaneira, pois esclarecem sobre o que nos aguarda no futuro. Além disso, esclarece quem são as famosas figuras dos anjos e dos demônios, sendo os primeiros, exatamente aqueles a quem tantas vezes pedimos ajuda, consolo, forças, conselhos para continuar a nossa sofrida jornada; e os últimos, são aqueles que, de modo geral, culpamos pelos nossos erros, deslizes e muitos infortúnios. Sendo assim, era de se esperar um interesse maior em bem compreender como estas forças antagônicas atuam ao longo de nossa existência.

É oportuno já esclarecer que os demônios, na forma como são entendidos na atualidade, não existem, ou seja, entidades voltadas exclusivamente à prática do mal, com a capacidade de rivalizar com o Criador na condução dos destinos do planeta.

Enquanto, a segunda parte, intitulada Exemplos:

[...] encerra numerosos exemplos que sustentam a teoria. Ou melhor, que serviram para o seu estabelecimento.3

Estes variados relatos de antigos habitantes da Terra, agora no plano etéreo, ofereceram à posteridade informações valiosíssimas, de toda ordem, abordando a questão da felicidade possível de ser vivenciada por alguns quando estavam reencarnados; narrativas de antigos suicidas descrevendo a surpresa e agruras daqueles que pensavam que escapariam dos problemas da vida, mas continuaram vivos e agora com agravantes – expiações -, em suas futuras reencarnações, sendo que, os relatos minuciosos destes últimos podem servir de freio à realização de novos suicídios; há também depoimentos de criminosos arrependidos, nos mostrando como é a vida daqueles que feriram a sociedade por suas condutas violentas, agressivas, despudoradas, inconsequentes e, agora, alguns arrependidos, reconsideram o que fizeram e pedem para retornar à Terra para refazer suas jornadas à luz do amor; na seção final, existem relatos de expiações terrestres e estes depoimentos muito nos ajudam a compreender melhor as situações que enfrentamos agora, com o objetivo de nos capacitar para melhor atravessar as tempestades comuns em mundos de provas e expiações. Há outras classes de narrativas, e todas deveriam despertar vivo interesse de nossa parte em conhecê-las.

Entretanto, por desconhecê-lo, não percebendo que não existe um lugar no Cosmo destinado a abrigar os eleitos e, igualmente, outro lugar, em um outro canto do Cosmo, reservado para os faltosos de toda a ordem, muitos espíritas imaginaram a existência de um local análogo, equivalente ao inferno - o Umbral.

Esta região e a ideia associada são muito usadas quando se deseja dizer que Espíritos maus, ao desencarnarem, são para lá conduzidos para expiar suas faltas, sabe-se lá por quanto tempo. Entretanto, Umbral, é palavra comum na área da arquitetura e da engenharia civil significando apenas uma passagem, por exemplo, os umbrais da porta que conduz de um lugar para outro. De fato, com raras exceções, todos nós vamos nos encontrar e atravessar o Umbral, pois esta região fluídica de passagem mantida pela emissão contínua de nossos pensamentos desalinhados, segundo Manoel Philomeno de Miranda, se estende por alguns quilômetros a partir da superfície do globo.4 E mais, esta região está fadada a desaparecer, pois é transitória, tão logo esta Humanidade se disponha a agir e pensar conforme a moral e os exemplos tão ricamente apresentados por Jesus.

Outros de forma semelhante, imaginam que o céu seja em Nosso Lar, uma das incontáveis colônias espirituais gravitando em torno da Terra, localizada na atmosfera do Umbral. Há mesmo aqueles afirmando que, impressionados com as narrativas da obra Nosso Lar, após a morte, desejam ardentemente ser recebidos e abrigados por esta Colônia espiritual, para talvez, prosear um pouco com André Luiz e, quem sabe, com os ministros e instrutores residentes nesta cidade etérea. Quanta infantilidade espiritual! O autor de Nosso Lar já pode estar reencarnado, faz tempo, inclusive em outro orbe.

Há muita fantasia criada no meio espírita por desconhecimento das leis de Deus. Neste último caso, é preciso saber que cada região do planeta possui várias colônias associadas traduzindo em suas construções fluídicas, a cultura e a realidade do particular desencarnado, para que ele não se assuste mais do que já vai se assustar ao se descobrir vivo, do lado de lá.

Alguns mesmo ainda não entenderam que a colônia Nosso Lar é apenas uma das que se vinculam ao estado do Rio de Janeiro, fundada por portugueses que por aqui viveram no passado, sendo assim, não é de se esperar que um brasileiro vivendo no sul do país, ou mesmo no norte, ao desencarnar, vá para lá, pois lá não estão os seus parentes, amigos e desafetos, Espíritos com quem precisa se ajustar, ou até reajustar, mas sim, em princípio, estão todos em uma colônia específica ligada à região de origem de cada qual.

A inexistência das regiões do Universo denominadas céu e inferno, já havia sido percebida no passado, tanto isso é verdade que existe um conto antigo descrevendo o encontro entre um centurião e um monge essênio. O romano solicita ao ancião que lhe explique “Onde se encontram as fornalhas do inferno a as delícias do céu”? O monge indaga quem perguntava e o orgulhoso conquistador enfatiza que era um centurião chefe da guarda pretoriana, ao que o sábio lhe diz que para ele o romano parecia mais um mendigo. De imediato o soldado leva a mão à bainha para se armar com o seu gládio e quando ergue o braço, encolerizado, para desferir um golpe fatal naquele insolente, o sábio lhe diz: “Eis as fornalhas do inferno”. O centurião percebe a sabedoria do velho hebreu, lentamente embainha sua espada, volta gradativamente ao seu estado normal de ânimo, reverencia humildemente o sábio com leve gesto de cabeça, se acalma e, então, nesta hora, o monge acrescenta: “Eis as delícias do céu.”5

Esta narrativa coincide com o ensinamento espírita sobre estas duas fictícias regiões que ainda atormentam muito o sono de muitos cristãos, pois temerosos de suas condutas na Terra, conhecedores de seus deslizes morais e éticos ainda desconhecidos da sociedade em que vivem, sem terem sido descobertos, imaginam que serão punidos, irremissivelmente, pelo Criador e conduzidos para o inferno. Iludidos que estão, vivendo sob este entendimento equivocado, imaginando, em seus momentos de incerteza, o fogo eterno e as figuras diabólicas que ajuízam, certamente, habitam esta região, já experimentam agora os sofrimentos das fornalhas do inferno, sem necessidade alguma de para lá se transferir, após a morte.

Por outro lado, aqueles que hoje se conduzem moderadamente, sem grandes ambições, vendo em seu próximo o irmão de jornada, independentemente, da etnia, credo, orientação sexual e gênero, buscando, pouco a pouco, a aquisição dos bens imateriais – as virtudes -, com todo o seu empenho, perdoando e amando como Jesus ensinou, agradecendo a Deus sempre, mesmo em situações que lhe pareçam injustas e não merecidas, já experimentam as delícias do céu, embora ainda encarnados.

Esta é a Justiça do Criador, não contemplando a existência de um céu nem de um inferno, pois o Pai celestial jamais deseja a morte do pecador, mas sim e apenas a do pecado.

 

Referências:

XAVIER, Francisco Cândido. Justiça divina. Pelo Espírito Emmanuel. ed. 4.  Rio de Janeiro/RJ; FEB, 1980. Céu.

2 KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno ou A Justiça divina segundo o Espiritismo. Tradução Evandro Noleto Bezerra. ed. 2. imp. 1. Brasília/DF: FEB, 2013. Prefácio.

3 KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno ou A Justiça divina segundo o Espiritismo. Tradução Evandro Noleto Bezerra. ed. 2. imp. 1. Brasília/DF: FEB, 2013. Prefácio.

4 FRANCO, Divaldo Pereira. Nas fronteiras da loucura. Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 2. ed. Salvador, BA: LEAL, 1984. Convite ao otimismo. cap. 19.

5 BRASILEIRO, Emídio Silva Falcão. Um dia em Jerusalém. 3. ed. Goiânia, GO: Gráfica e Editora Três Poderes LTDA, 1989. Sabedoria (Nicanor).

    

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita