Correio mediúnico

Espírito: Irmão G.

  

Primeiros instantes de um morto


Meus amigos:

Recordando aquele rico da parábola evangélica que não obteve permissão para tornar ao círculo doméstico, depois da morte, compreendo hoje perfeitamente a justeza da proibição que lhe frustrou o propósito, porque, sem sombra de dúvida, ninguém no mundo lhe daria crédito à palavra.

A experiência social na Terra vive tão distraída nos jogos de máscara, que a visita da verdade sem mescla, a qualquer agrupamento humano, por muito tempo ainda será francamente inoportuna.

Falando assim ao vosso mundo afetivo, não nutro o menor interesse em quebrar a cadeia de enganos a que se aprisionam meus antigos laços do coração.

Profundamente transformado, depois da grande travessia, em que o túmulo é o marco de nosso retorno à realidade, dirijo-me particularmente a vós outros, navegantes da fé no oceano da vida, para destacar a necessidade de valorização do tempo nos curtos dias de nossa permanência no corpo.

Para exemplo, recorro ao meu caso, já que, pelo concurso fraterno, ligastes-vos ao processo de minha renovação.

Como sabeis, qual ocorre à árvore doente, que tomba aos primeiros toques do lenhador, caí também, de imprevisto, ao primeiro golpe da Morte.

Industrial, administrador e homem público, em atividade intensa e incessante, não admitia que o sepulcro me requisitasse tão apressadamente à meditação.

A angina, porém, espreitava-me, vigilante, e fulminou-me sem que eu pudesse lutar.

Recordo-me de haver sido arremessado a uma espécie de sono que me não furtava a consciência e a lucidez, embora me aniquilasse os movimentos.

Incapaz de falar, ouvi os gritos dos meus e senti que mãos amigas me tateavam o peito, tentando debalde restituir-me a respiração.

Não posso precisar quantos minutos gastei na vertigem que me tomara de assalto, até que, em minha aflição por despertar, notei que a forma inerte me retomava a si, que minhalma entontecida regressava ao corpo pesado; no entanto, espessa cortina de sombra parecia interpor-se agora entre os meus afeiçoados e a minha palavra ressoante, que ninguém atendia…

Inexplicavelmente assombrado, em vão pedia socorro, mas acabei por resignar-me à ideia de que estava sendo vítima de estranho pesadelo, prestes a terminar. Ainda assim, amedrontava-me a ausência de vitalidade e calor a que me via sentenciado.

Após alguns minutos de pavoroso conflito, que a palavra terrestre não consegue determinar, tive a impressão de que me aplicavam sacos de gelo aos pés. Por mais verberasse contra semelhante medicação, o frio alcançava-me todo o corpo, até que não pude mais…

Aquilo valia por expulsão em regra. Procurei libertar-me e vi-me fora do leito, leve e ágil, pensando, ouvindo e vendo… Contudo, buscando afastar-me, reparei que um fio tênue de névoa branquicenta ligava minha cabeça móvel à minha cabeça inerte.

Indiscutivelmente delirava, — dizia de mim para comigo, — no entanto aquele sonho me dividia em duas personalidades distintas, não obstante guardar a noção de minha identidade, perfeita.

Apavorado, não conseguia maior afastamento da câmara íntima, reconhecendo, inquieto, que me vestiam caprichosamente a estátua de carne, a enregelar-se.

Dominava-me indizível receio. Sensações de terror neutralizavam-me o raciocínio. Mesmo assim, concentrei minhas forças na resistência. Retomaria o corpo. Lutaria por reaver-me. O delíquio inesperado teria fim.

Contudo, escoavam-se as horas e, não obstante contrariado, vi-me exposto à visitação pública.

Mas oh! irrisão de meu novo caminho!… Eu, que me sentia singularmente repartido, observei que todas as pessoas com acesso ao recinto, diante de mim, revelavam-se divididas em identidade de circunstâncias, porque, sem poder explicar o fenômeno, lhes escutava as palavras faladas e as palavras imaginadas.

Muitas diziam aos meus familiares em pranto: — Meus pêsames! Perdemos um grande amigo…

E o pensamento se lhes esguichava da cabeça, atingindo-me como inexprimível jato de força elétrica, acentuando: — “Não tenho pesar algum, este homem deveria realmente morrer…”

Outras se enlaçavam aos amigos, e diziam com a boca: — Meus sentimentos! O doutor G., morreu moço, muito moço.

E acrescentavam, refletindo: — “Morreu tarde… ainda bem que morreu… Velhaco! Deixou uma fortuna considerável… deve ter roubado excessivamente…”

Outras, ainda, comentavam junto à carcaça morta: — Homem probo, homem justo!…

E falavam de si para consigo: — “Político ladrão e sem palavra! que a terra lhe seja leve e que o inferno o proteja!…”

Via-me salteado por interminável projeção de espinhos invisíveis a me espicaçarem o coração. Torturado de vergonha, não sabia onde esconder-me. Ainda assim, quisera protestar quanto às reprovações que me pareceram descabidas.

Realmente não fora o homem que devia ter sido, no entanto, até ali, vivera como o trabalhador interessado em quitar-se com os seus compromissos.

Não seria falta de caridade atacarem-me, assim, quando plenamente inabilitado a qualquer defensiva?

Por muito tempo, perdurava a conturbação, até que encontrei algum alívio…

Muitas crianças das escolas, que eu tanto desejaria ter ajudado, oravam agora junto a mim. Velhos empregados das empresas em que eu transitara, e de cuja existência não cogitara com maior interesse, vinham trazer-me respeitosamente, com lágrimas nos olhos, a prece e o carinho de sincera emoção. Antigos funcionários, fatigados e humildes, aos quais estimara de longe, ofertavam-me pensamentos de amor. Alguns poucos amigos envolveram-me em pensamentos de paz.

Aquietei-me, resignado.

Doce bálsamo de reconhecimento acalmou-me a aflição e pude chorar, enfim…

Com o pranto, consegui encomendar-me à Bondade Infinita de Deus, respirando consolo e apaziguamento.

Humilhado, aguardei paciente as surpresas da nova situação. Estava inegavelmente morto e vivo. O catafalco não favorecia qualquer dúvida.

Curtia dolorosas indagações, quando, em dado instante, arrebataram-me o corpo. Achava-me livre para pensar, mas preso aos despojos hirtos pelo estranho cordão que eu não podia compreender e, em razão disso, acompanhei o cortejo triste, cauteloso e desapontado.

Não valiam agora o carinho sincero e a devoção afetiva com que muitos braços amigos me acalentavam o ataúde… A vizinhança do cemitério abalava a escassa confiança que passara a sustentar em mim mesmo. O largo portão aberto, a contemplação dos túmulos à entrada e a multidão que me seguia, compacta, faziam-me estarrecer.

Tentei apoiar-me em velhos companheiros de ideal e de luta, mas o ambiente repleto de palavras vazias e orações pagas como que me acentuava a aflição e o desespero. Senti-me fraquejar. Clamei debalde por socorro, até que, com os primeiros punhados de terra atirados sobre o esquife, caí na sepultura acolhedora, sem qualquer noção de mim mesmo.

Apagara-se o conflito. Tudo era agora letargo, abatimento, exaustão… Por vários dias repousei, até que, ao clarão da verdade, reconheci que as tarefas do industrial e político haviam chegado a termo. Apesar disso, porém, a certeza da vida que não morre levantara-me a esperança.

Antigas afeições surgiram, amparando-me a luta nova e, desse modo, voltou à condição do servidor anônimo o homem que talvez indebitamente se elevara no mundo aos postos de diretiva.

É assim que, em vos visitando, devo estimular-vos ao culto dos valores claros e certos. Instalar a felicidade no próprio espírito, através da felicidade que pudermos edificar para os outros, é a única forma de encontrarmos a verdadeira felicidade.

Tenho hoje a convicção de que os patrimônios financeiros apenas agravam as responsabilidades da alma encarnada, e a política, presentemente, para mim se assemelha à tina d’água que agitamos em esforço constante para vê-la sempre a mesma, em troca apenas do cansaço que nos impõe.

Todos os aparatos da experiência humana são sombras a se movimentarem nas telas passageiras da vida.

Só o bem permanece.

Só o bem que idealizamos e plasmamos é a luz que fica.

Assim pois, buscando o bem, roguemos a Deus nos esclareça e nos abençoe. (*)

 

(*) O irmão G. foi, na última existência, político e administrador de méritos indiscutíveis.

 

Do livro Vozes do Grande Além, comunicação recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier.


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita