Allan Kardec e a
educação moral da
infância
Reconhecido que o
egoísmo e o orgulho são
a fonte da maioria das
misérias humanas, é
preciso atacá-los no seu
estado de embrião, por
meio da educação dos que
estão de volta ao mundo
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Em fevereiro de 1864,
mesmo ano em que, meses
depois, lançaria a
primeira versão d´O
Evangelho segundo o
Espiritismo, Kardec
publicou na Revista
Espírita um texto
precioso pertinente à
educação das crianças
que merece ser lido e
meditado.
O texto foi por ele
intitulado “Primeiras
lições de moral da
infância”.
Ei-lo:
“De todas as chagas
morais da sociedade,
parece que o egoísmo é a
mais difícil de
desarraigar. Com efeito,
ela o é tanto mais
quanto mais é alimentada
pelos
|
mesmos hábitos da
educação. Parece que se
toma a tarefa de, desde
o berço, excitar certas
paixões que mais tarde
tornam-se uma segunda
natureza. E admiram-se
dos vícios da sociedade,
quando as crianças os
sugam com o leite.
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Eis um exemplo que, como
cada um pode julgar,
pertence mais à regra do
que à exceção. Numa
família de nosso
conhecimento, há uma
menina de quatro a cinco
anos, de uma
inteligência rara, mas
que tem os pequenos
defeitos das crianças
mimadas, isto é, um
pouco caprichosa,
chorona, teimosa, e nem
sempre agradece quando
lhe dão qualquer coisa.
Isto o que os pais
cuidam bem de corrigir,
porque, fora destes
defeitos, segundo eles,
ela tem um coração de
ouro, expressão
consagrada. Vejamos como
eles se conduzem para
lhe tirar essas pequenas
manchas e conservar o
ouro em sua pureza.
Um dia trouxeram um doce
à criança e, como de
costume, lhe disseram:
‘Tu o comerás se
fores boazinha’.
Primeira lição de
gulodice.
Quantas vezes, à mesa,
não dizem a uma criança
que não comerá tal
petisco se chorar.
‘Faze isto, ou faze
aquilo’, dizem,
‘e terás creme’ ou
qualquer outra coisa que
lhe apeteça; e a criança
é constrangida, não pela
razão, mas em vista de
satisfazer um desejo
sensual que aguilhoa. E
ainda muito pior, quando
lhe dizem, o que não é
menos frequente, que
darão o seu pedaço a uma
outra. Aqui já não é só
a gulodice que está em
jogo, é a inveja. A
criança fará o que lhe
dizem, não só para ter,
mas para que a outra não
tenha.
Dizem que é preciso
formar cedo as crianças,
o que é uma máxima muito
sábia
Querem dar-lhe uma lição
de generosidade?
Dizem-lhe: ‘Dá esta
fruta ou este brinquedo
a fulaninho’. Se ela
recusa, não deixam de
acrescentar, para nela
estimular um bom
sentimento: ’Eu te
darei um outro’. De
modo que a criança não
se decide a ser generosa
senão quando está certa
de nada perder.
Certo dia testemunhamos
um fato bem
característico deste
gênero. Era uma criança
de cerca de dois anos e
meio, a quem tinham
feito semelhante ameaça,
acrescentando: ‘Nós o
daremos ao irmãozinho e
tu não comerás’. E
para tornar a lição mais
sensível, puseram o
pedaço no prato deste;
mas o irmãozinho,
levando a coisa a sério,
comeu a porção. À vista
disto, o outro ficou
roxo e não era preciso
ser o pai, nem a mãe,
para não ver as faíscas
de cólera e de ódio que
saíram de seus olhos. A
semente estava lançada:
poderia produzir bom
grão?
Voltemos à menina, da
qual falamos. Como não
se deu conta da ameaça,
sabendo por experiência
que raramente a
executavam, desta vez os
pais foram mais firmes,
pois compreenderam que
era necessário dominar
esse pequeno caráter, e
não esperar que a idade
lhe tivesse dado um mau
hábito. Diziam que é
preciso formar cedo as
crianças, máxima muito
sábia, e para pô-la em
prática, eis o que
fizeram: ‘Prometo-te’,
disse a mãe, ‘que se
não obedeceres, amanhã
cedo darei o teu bolo à
primeira menina pobre
que passar’. Dito e
feito. Desta vez queriam
o bem, e dar-lhe uma boa
lição. Assim, no dia
seguinte de manhã,
avistada uma pequena
mendiga na rua,
fizeram-na entrar,
obrigaram a filha a
tomá-la pela mão e ela
mesma lhe dar o bolo.
Então elogiaram a sua
docilidade. Moralidade:
a filha disse: ‘É
mesmo, se eu soubesse
teria tido pressa em
comer o bolo ontem’.
E todos aplaudiram esta
resposta espirituosa.
Com efeito, a criança
tinha recebido uma forte
lição, mas uma lição de
puro egoísmo, da qual
não deixará de
aproveitar-se uma outra
vez, pois agora sabe o
que custa a generosidade
forçada. Resta saber que
frutos darão mais tarde
esta semente quando, com
mais idade, a criança
fizer aplicação dessa
moral em coisas mais
sérias que um bolo.
Não basta ao médico
saber que deve procurar
curar: é preciso saber
como agir
Sabe-se de todos os
pensamentos que este
cínico fato pode ter
feito germinar nessa
cabecinha? Depois disto,
como querem que uma
criança não seja egoísta
quando, em vez de nela
despertar o prazer de
dar e de lhe representar
a felicidade daquele que
recebe, impõem-lhe um
sacrifício como punição?
Não é inspirar aversão
ao de dar àqueles que
necessitam?
Um outro hábito,
igualmente frequente, é
o de castigar a criança
mandando-a comer na
cozinha com os criados.
A punição está menos na
exclusão da mesa, do que
na humilhação de ir para
a mesa da gente de
serviço. Assim se acha
inoculado, desde a mais
tenra idade, o vírus da
sensualidade, do
egoísmo, do orgulho, do
desprezo aos inferiores,
das paixões, numa
palavra, que com razão
são consideradas como as
chagas da humanidade.
É preciso ser dotado de
uma natureza
excepcionalmente boa
para resistir a tais
influências, produzidas
na idade mais
impressionável, e onde
não podem encontrar o
contrapeso nem da
vontade, nem da
experiência. Assim, por
pouco que aí se ache o
germe das más paixões, o
que é o caso mais
ordinário, dada a
natureza dos Espíritos
que, em maioria, se
encarnam na Terra, não
podem senão
desenvolver-se sob tais
influências, ao passo
que seria preciso
observar-lhe os menores
traços para os apagar.
Esta falta, sem dúvida,
é dos pais; mas, é bom
dizer, muitas vezes
estes pecam mais por
ignorância do que por má
vontade. Em muitos há,
incontestavelmente, uma
culposa despreocupação,
mas em muitos outros a
intenção é boa, é o
remédio que nada vale,
ou que é mal aplicado.
Sendo os primeiros
médicos da alma dos
filhos, deveriam ser
instruídos, não só de
seus deveres, mas dos
meios de cumpri-los.
Não basta ao médico
saber que deve procurar
curar: é preciso saber
como agir. Ora, para os
pais, onde estão os
meios de instruir-se
nesta parte tão
importante de sua
tarefa? Hoje se dá muita
instrução à mulher;
fazem-na passar por
exames rigorosos; mas,
algum dia foi exigido da
mãe que soubesse como
fazer para formar o
moral de seu filho?
Ensinam-lhe receitas
caseiras; mas foi
iniciada aos mil e um
segredos de governar os
jovens corações?
Assim, os pais são
abandonados, sem guia, à
sua iniciativa; eis por
que tantas vezes seguem
caminhos errados; também
recolhem, nos erros dos
filhos já crescidos, o
fruto amargo de sua
inexperiência ou de uma
ternura mal entendida, e
a sociedade inteira lhes
recebe o contragolpe.
Os novos horizontes que
o Espiritismo abre fazem
ver as coisas de outra
maneira
Desde que é reconhecido
que o egoísmo e o
orgulho são a fonte da
maioria das misérias
humanas; que enquanto
reinarem na Terra não se
pode esperar nem a paz,
nem a caridade, nem a
fraternidade, então é
preciso atacá-los no
estado de embrião, sem
esperar que fiquem
vivazes.
Pode o Espiritismo
remediar esse mal? Sem
nenhuma dúvida; e não
hesitamos em dizer que é
o único suficientemente
poderoso para fazê-lo
cessar. Por um novo
ponto de vista, do qual
faz observar a missão e
a responsabilidade dos
pais; fazendo conhecer a
fonte das qualidades
inatas, boas ou más;
mostrando a ação que se
pode exercer sobre os
Espíritos encarnados e
desencarnados; dando a
fé inquebrantável, que
sanciona os deveres;
enfim, moralizando os
próprios pais. Ele já
prova sua eficácia pela
maneira mais racional
pela qual são educadas
as crianças nas famílias
verdadeiramente
espíritas.
Os novos horizontes que
o Espiritismo abre fazem
ver as coisas de outra
maneira. Sendo o seu
objetivo o progresso
moral da humanidade,
forçosamente deverá
iluminar o grave
problema da educação
moral, primeira fonte da
moralização das massas.
Um dia se compreenderá
que este ramo da
educação tem seus
princípios, suas regras,
como a educação
intelectual, numa
palavra, que é uma
verdadeira ciência.
Talvez um dia, também,
será imposta a toda mãe
de família a obrigação
de possuir esses
conhecimentos, como se
impõe ao advogado a de
conhecer o Direito.”
*
Acreditamos que
relembrar tão lúcidas
lições pode ajudar muito
a todos que têm a seu
cargo a tarefa de educar
os pequeninos, como os
pais e os educadores,
dentre os quais avultam
em nosso meio os
voluntários da
evangelização
infantil.
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