Quando os
médiuns falham
A empresa de streaming Netflix
adicionou ao seu
catálogo recentemente
uma série reveladora
sobre a vida de João
Teixeira de Faria, o
chamado “João de Deus”.
Dividido em quatro
capítulos, o
documentário traça, em
linhas gerais, a
ascensão e queda do
famoso médium goiano.
Como não poderia deixar
de ser, a maior parte
dos capítulos é dedicada
ao ocaso de João. Nesse
sentido, algumas vítimas
são apresentadas, seus
emocionantes depoimentos
são detalhadamente
colhidos e os
desdobramentos em suas
vidas são explorados por
imagens pungentes e
tocantes. Desde o início
do documentário
cinematográfico ficam
patentes os salientes
desequilíbrios sexuais
do médium, que o
levaram, por fim, à
derrocada e posterior
prisão.
Amigos de infância são
instados a falar e,
assim sendo, retratam-no
como uma figura
aparentemente normal e
acessível, mas que, em
determinado momento,
rompe com as suas
raízes. Beneficiados e
colaboradores igualmente
se manifestam de maneira
positiva em relação a
ele. Não fica claro,
porém, quando o
chamamento ao exercício
do seu mediunato ocorre.
O certo é que para se
sentir mais livre na sua
atividade de médium
curador, ele se muda
para Abadiânia
transformando-se num
“Deus”. É efetivamente a
partir dali que tudo se
desenrola com mais
intensidade. João
torna-se um personagem
poderoso e respeitado,
sua fama corre mundo
afora (viaja para outros
países onde é aclamado).
Políticos, empresários,
artistas e celebridades
do Brasil e do exterior
passam a visitá-lo – sem
falar da gente comum.
Até a badaladíssima
apresentadora de TV
americana, Ophra
Winfrey, veio a
Abadiânia se consultar
com ele.
Em dado momento
formou-se um lucrativo e
próspero business em
torno da figura de João,
que abarcava desde o
transporte dos crentes
até as diárias das
pousadas. Evidenciou-se,
assim, um grande
espírito empreendedor -
alguns certamente
qualificarão, não sem
razão, de explorador -
em João de Deus. (Aliás,
logo após a sua prisão,
a busca policial em seu
imóvel resultou na
apreensão de R$ 1,8
milhão em dinheiro e
grande quantidade de
pedras preciosas,
particularmente
esmeraldas.) Além disso,
a economia local cresceu
– pelo visto agradando a
todos os moradores da
cidade.
Pessoalmente, recordo-me
que há alguns anos atrás
era até certo ponto
anormal não ter ido
àquela parte do país.
Alçada à condição de
lugar sagrado onde
milagres supostamente
aconteciam, as pessoas
para lá acorriam aos
magotes em busca de
cura. De minha parte,
nunca passei sequer
perto daquelas paragens,
apesar de ter parentes
doentes na família. Na
verdade, sempre
considerei a mediunidade
de cura algo muito
delicado. A recomendação
de Jesus para “darmos de
graça o que de graça
recebemos” sempre ecoou
fortemente na minha
mente. Mas também nunca
critiquei quem procurou
os serviços mediúnicos
de João – aliás, alguns
amigos(as) meus
recorreram a ele –, e
sempre reconheci que,
quando a dor e o
sofrimento batem à nossa
porta, é natural que
busquemos ajuda alhures,
especialmente quando os
remédios e tratamentos
convencionais não
funcionam.
Por outro lado, é muito
curioso notar que os
seus auxiliares mais
diretos dessem pouca ou
nenhuma atenção ao seu
estranho hábito de levar
algumas mulheres –
invariavelmente jovens e
bonitas – a um certo
quarto onde apenas ele
atendia. Seja como for,
foi naquela alcova que
os abusos sexuais
aconteciam com
frequência. As vítimas
saíam dali aturdidas,
sem rumo ou amparo. As
que relataram a
violência ali sofrida
não encontravam o devido
suporte e assistência
dos trabalhadores(as).
Pelo contrário. Uma das
vítimas chegou a gravar
uma justificativa
bizarra de um auxiliar
muito próximo do médium.
Ao apresentar a denúncia
na delegacia da cidade,
segundo ela, o
acolhimento não foi
melhor. Aparentemente,
muitos já sabiam o que
acontecia ali ou pelo
menos deduziam, mas se
calavam. Afinal, João
era um “rei”. Um
colaborador estrangeiro,
que percebeu que algo
muito estranho estava
acontecendo, decidiu se
afastar completamente. O
seu depoimento é deveras
esclarecedor.
Mas João de Deus
continuou na sua sanha
predatória, os boatos
aumentaram até que a
verdade insofismável
veio à tona em 2018. Não
havia mais como
escondê-la. Entre as
denúncias de abuso –
mais de 330 mulheres o
fizeram – também estava
a da sua filha, Dalva
Teixeira. No último
capítulo da série, a
propósito, a sua
terrível experiência é
minuciosamente descrita.
Ela confessa que o pai a
molestara desde os seus
dez anos de idade. Do
seu triste relato
depreende-se que a sua
vida é uma verdadeira
expiação. Suas agruras
merecem a comiseração de
todos nós. No pior
momento, ela mergulhou
nas drogas e agora tenta
retomar a sua existência
com o apoio dos filhos.
Além disso, processa o
pai – em segredo de
justiça – por danos
morais.
As atrocidades cometidas
por João de Deus – que
ele nega, por sinal,
veementemente –
levaram-no a padecer 18
meses de encarceramento,
apesar de já ter sido
condenado a 64 anos de
prisão (outros processos
estão em andamento).
Dada a precariedade da
sua saúde física, a
pandemia e certamente a
conhecida benevolência
da justiça brasileira
com os criminosos, ele
está em prisão
domiciliar usando uma
tornozeleira eletrônica.
Em suma, não será nesta
dimensão onde a
imperfeição ainda
prevalece que ele pagará
pelos seus crimes.
Posto isto, é
praticamente certo que
João aliviou ou mesmo
cessou o sofrimento de
muita gente (esse
aspecto, aliás, é pouco
explorado na série). Mas
os males do ego, orgulho
e, sabe-se mais o que, o
envolveram
completamente. Por
conseguinte, ele perdeu
o apoio das entidades
espirituais do bem que o
amparavam. Partindo-se
dessa premissa, pode-se
inferir que ele não vigiou e orou o
suficiente. Em
decorrência disso, as
suas sombras interiores
coadjuvadas por
entidades malignas que
desejavam a sua perdição
passaram a dominar-lhe
completamente as ações.
Como bem explica Allan
Kardec, em O Livro
dos Médiuns, “Em
resumo, a mediunidade é
uma faculdade concedida
para o bem e os bons
Espíritos se afastam de
quem pretenda fazer dela
um degrau para chegar ao
que quer que seja, que
não corresponda às
vistas da providência. O
egoísmo é a chaga da
sociedade; os bons
Espíritos a combatem; a
ninguém, portanto,
assiste o direito de
supor que eles o venham
servir. Isto é tão
racional, que inútil
fora insistir mais sobre
este ponto”.
Não se identifica, e
provavelmente não
conseguiremos saber com
exatidão o instante em
que ele se perdeu. O
certo é que ele trazia
dentro de si o vírus da
concupiscência, que se
libertou em dado momento
levando-o a cometer
crimes abomináveis
contra as suas perplexas
vítimas. João de Deus
declarou que confia que
“Deus o livrará dessa”.
Parece que o famoso
médium desconhece as
leis universais e,
sobretudo, a grave
advertência dada pelo
maior médium de todos,
Jesus: “a cada um
segundo suas obras”. No
geral, sua queda moral
merece profunda
reflexão, em especial
por parte daqueles que
reencarnaram com fortes
compromissos nesse setor
em particular. Como
elucidou o tarefeiro
Tobias da colônia
espiritual Nosso Lar a
André Luiz, no livro Os
Mensageiros (psicografia
de Francisco Cândido
Xavier):
- “[...] Saem milhares
de mensageiros aptos
para o serviço, mas são
muito raros os que
triunfam. Alguns
conseguem execução
parcial da tarefa,
outros muitos fracassam
de todo. O serviço
legítimo não é
fantasia. É esforço sem
o qual a obra não pode
aparecer nem prevalecer.
Longas fileiras de
médiuns e doutrinadores
para o mundo carnal
partem daqui, com as
necessárias instruções,
porque os benfeitores da
Espiritualidade
Superior, para
intensificarem a
redenção humana,
precisam de renúncia e
de altruísmo. Quando os
mensageiros se esquecem
do espírito missionário
e da dedicação aos
semelhantes, costumam
transformar-se em
instrumentos inúteis. Há
médiuns e mediunidade,
doutrinadores e
doutrina, como existem a
enxada e os
trabalhadores. [...]”.
Notem, portanto, que o
indivíduo que aceita tal
missão assume enorme
responsabilidade perante
a espiritualidade maior.
Esse também deve ter
sido o caso de João de
Deus, que mais dia ou
menos dia a ela
retornará certamente
carregando muito pesar
na alma. Ao que tudo
indica, o seu fracasso
demandará longo tempo
para ser consertado.
Pode-se supor que nem
todas as suas vítimas o
perdoarão rapidamente.
Novas experiências
difíceis provavelmente o
aguardam para que ele
possa acrisolar o seu
Espírito e, um dia,
reencarnar mais
equilibrado para servir
a Deus e as suas
criaturas.
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