Espiritismo e
responsabilidade social
corporativa: explorando
algumas convergências
Já não é mais nenhuma
novidade o fato de que
vivemos num tempo no
qual as organizações
exercem considerável
influência em nossas
vidas. De fato,
dificilmente conseguimos
algo realizar sem a elas
recorrer tal a
abrangência, penetração
na sociedade e,
sobretudo, poder que
desfrutam. Há, por
sinal, muitas empresas
transnacionais que têm
mais valor econômico do
que o PIB de muitas
nações no planeta. De
maneira muito
competente, cumpre
reconhecer, elas
preenchem com avidez os
espaços não explorados
pelo poder público,
fundamentalmente
estimuladas pela sua
irrefreável capacidade
de empreender e
abundância de recursos.
Aliás, o Estado pode
muito fazer na atual
estrutura de governança
do mundo, mas as
empresas poder fazer
ainda mais. Afinal, sem
elas não teríamos bens
essenciais à
continuidade da vida
humana.
Mais ainda, elas têm
notável capacidade de
processar insumos de
variada natureza
convertendo-os em
produtos ou serviços
basilares. Mas as
empresas – o raciocínio
é igualmente válido para
toda e qualquer
instituição – também têm
defeitos e imperfeições,
assim como todos nós
seres humanos que as
dirigimos. Não há
nenhuma dúvida que
espelham os valores
acalentados pelos seus
decisores e gestores. Se
estes forem virtuosos, é
provável que elas também
o sejam, mas se eles não
forem, é praticamente
certo que elas
demonstrem uma faceta
obscura.
Um dos avanços mais
expressivos no corrente
século é a preocupação
das empresas em adotar
as ideias delineadas
pelo conceito de
responsabilidade social
corporativa. Esse
moderno conceito
empresarial é, muitas
vezes, utilizado como
sinônimo de
empreendimento social,
cidadania corporativa,
sustentabilidade,
desenvolvimento
sustentável, gestão dos stakeholders (grupos
com os quais as
organizações interagem
tais como empregados,
acionistas, comunidades,
governo e fornecedores), ética
corporativa e assim por
diante.[1] A
ideia central é que as
empresas avancem além
dos seus deveres e
obrigações
discricionárias com os
seus acionistas,
incorporando outras
preocupações e dimensões
na condução das suas
atividades. Desse modo,
espera-se a adoção de um
comportamento
socialmente responsável
por meio das decisões e
ações tomadas quer por
indivíduos, quer por
organizações, na direção
de aumentar o bem-estar
social (ou seja, fazer
o bem) ou para
evitar prejuízos à
sociedade.
Ao perseguir esses
objetivos – que vão além
da exclusiva preocupação
com obtenção de lucro
para os acionistas,
missão precípua das
empresas, conforme
outrora defendido pelo
célebre economista
americano Milton
Friedman (1912-2006) –
não tão prosaicos,
digamos assim, os
gestores empresariais
cooperam a serviço do
bem comum, que é o que
se espera avidamente
nesse século. Para a
realização dessa tarefa,
portanto, necessário se
faz considerar as
interdependências, assim
como as demandas não
raro conflitantes dos
diversos stakeholders.[2]
Assim sendo, chegamos ao
estágio no qual as
atividades inerentes ao
conceito de
responsabilidade social
corporativa englobam
legítimas demandas
sociais, que permeiam um
terreno comum entre as
necessidades
empresariais e as
públicas. Um exemplo
saliente é a busca de
sustentabilidade para
contemplar os direitos
humanos preconizado pelo
Pacto Global da ONU.[3]
Portanto, tal assunto
ganhou enorme relevância
considerando o
amadurecimento e
aperfeiçoamento dos
processos de gestão
empresariais, bem como a
crescente destruição da
natureza e o
depauperamento dos seus
finitos recursos. Posto
isto, é sempre
pertinente frisar que a
implacável exploração do
meio ambiente por meio
de ações extrativistas,
o envenenamento dos rios
e oceanos e as
atividades alicerçadas
no intenso uso do
carbono geraram graves
mudanças climáticas, que
nos cobram agora um alto
preço. E as soluções
para remediar tão
nefasto quadro não são
simples e os seus
impactos demorados.
Entretanto, não se pode
mais cruzar os braços
nem se omitir diante das
inúmeras evidências da
ação inconsequente dos
seres humanos, que, em
síntese, envenenaram o
mundo. Dentro desse
contexto assustador,
ações corporativas
responsáveis são
essenciais para que o
mal já causado seja pelo
menos mitigado.
Recordemos, a propósito,
que a Terra abriga não
apenas seres encarnados,
mas bilhões de Espíritos
desencarnados aguardando
a hora de voltar ao
ambiente material para
dar prosseguimento ao
seu autoaperfeiçoamento.
Há inegavelmente aí um
componente de natureza
espiritual – esteja ele
ancorado em princípios
religiosos ou não - que
os cientistas de
mentalidade mais aberta
estão começando a
contemplar.[4] Por
exemplo, para o
pesquisador Andrew J.
Hoffman, da Universidade
de Michigan, quando as
pessoas ouvem os apelos
oriundos das igrejas,
mesquitas, sinagogas ou
templos estimulando-as a
pensar na mudança
climática, assim como a
proteger o meio
ambiente, há uma conexão
com o seu âmago porque
estão vivas.[5]
Com efeito, as religiões
podem fazer muito no
sentido de alertar as
pessoas para as suas
inúmeras
responsabilidades,
inclusive as relativas
às dimensões ora
analisadas. O
Espiritismo, por sua
vez, na função de
Consolador Prometido,
tem total lastro na
moral cristã, que
recomenda, nada mais
nada menos, do que a
desafiadora busca da
perfeição.
Nesse sentido, o
Espírito Emmanuel
adverte, com
propriedade, para o fato
de que “Muitos escutam a
palavra do Cristo,
entretanto, muito poucos
são os que colocam a
lição nos ouvidos”. A
elevada entidade ainda
observa que “Os círculos
doutrinários do
Cristianismo estão
repletos de aprendizes
que ... Comparecem às
atividades espirituais,
sintonizando a mente com
todas as inquietações
inferiores, menos com o
Espírito do Cristo.
Dobram joelhos, repetem
fórmulas verbalistas,
concentram-se em si
mesmos, todavia, no
fundo, atuam em esfera
distante do serviço
justo”.[6]
Não obstante as falhas e
deficiências humanas,
chegamos a um novo
tempo: a era da
transição, como nos
informam os missionários
de Deus. Desse modo,
esse é o momento de
aferição de valores e
motivações – até porque
a nossa Casa Maior, a
Terra, está seriamente
ameaçada devido a nossa
incúria. As
consequências
deploráveis dos nossos
excessos são visíveis
por toda a parte. É,
portanto, imperativo
mudar no sentido de se
agir com mais
responsabilidade em
todas as esferas da
vida.
Ecoando o pensamento de
Kardec, “Hoje, a
humanidade está madura
para lançar o olhar a
alturas que nunca tentou
divisar, a fim de
nutrir-se de ideias mais
amplas e compreender o
que antes não
compreendia”.[7] Estendendo
o seu raciocínio, o Codificador
acrescenta que: “À
medida que os homens se
instruem acerca das
coisas espirituais,
menos valor dão às
coisas materiais.
Depois, necessário é que
se reformem as
instituições humanas que
o entretêm e excitam.
Isso depende da
educação”.[8] Kardec
igualmente elucida que é
missão dos Espíritos
encarnados (questão
573 d’O Livro
dos Espíritos):
“... instruir os homens,
em lhes auxiliar o
progresso; em lhes
melhorar as
instituições, por meios
diretos e materiais. As
missões, porém, são mais
ou menos gerais e
importantes. O que
cultiva a terra
desempenha tão nobre
missão, como o que
governa, ou o que
instrui. Tudo na
Natureza se encadeia. Ao
mesmo tempo que o
Espírito se depura pela
encarnação, concorre,
dessa forma, para a
execução dos desígnios
da Providência. Cada um
tem neste mundo a sua
missão, porque todos
podem ter alguma
utilidade”.[9]
Posto isto, o
Espiritismo preceitua
que o indivíduo é o
grande agente das
mudanças. Ou seja, só o
homem espiritualizado
pode desempenhar um
papel mais consentâneo
com a ideia de evolução,
reformando as
instituições e ajudando
os seus irmãos no rumo
do progresso
generalizado. O
indivíduo que guarda os
ensinamentos do Cristo
como diretriz de vida
comporta-se
adequadamente, pois não
deseja para si o que
também não deseja para
os outros. Allan Kardec
explorou magistralmente
essa ideia ao delinear o
perfil do “homem de
bem”. Entre outros
aspectos, ele enfatizou
que:
“O verdadeiro homem de
bem é o que cumpre a lei
de justiça, de amor e de
caridade, na sua maior
pureza. Se ele interroga
a consciência sobre seus
próprios atos, a si
mesmo perguntará se
violou essa lei, se não
praticou o mal, se fez
todo o bem que podia, se
desprezou
voluntariamente alguma
ocasião de ser útil, se
ninguém tem qualquer
queixa dele; enfim, se
fez a outrem tudo o que
desejara lhe fizessem.
“[...]
“Encontra satisfação nos
benefícios que espalha,
nos serviços que presta,
no fazer ditosos os
outros, nas lágrimas que
enxuga, nas consolações
que prodigaliza aos
aflitos. Seu primeiro
impulso é para pensar
nos outros, antes de
pensar em si, é para
cuidar dos interesses
dos outros antes do seu
próprio interesse.
[...].
“O homem de bem é bom,
humano e benevolente
para com todos, sem
distinção de raças,
nem de crenças,
porque em todos os
homens vê irmãos seus.
“[...]
“Estuda suas próprias
imperfeições e trabalha
incessantemente em
combatê-las. Todos os
esforços emprega para
poder dizer, no dia
seguinte, que alguma
coisa traz em si de
melhor do que na
véspera.
“[...]
“Se a ordem social
colocou sob o seu mando
outros homens, trata-os
com bondade e
benevolência, porque são
seus iguais perante
Deus; usa da sua
autoridade para lhes
levantar o moral e não
para os esmagar com o
seu orgulho. Evita tudo
quanto lhes possa tornar
mais penosa a posição
subalterna em que se
encontram.
“[...]”.
Em suma, Kardec definiu
as características
básicas de um indivíduo
com alto grau de
consciência e
responsabilidade. Seria
óbvio supor que é
exatamente desse tipo de
ser humano que
necessitamos operando as
instituições,
organizações, assim como
estabelecendo os rumos
das nossas sociedades,
enfim. Aliás, Jesus
Cristo foi muito preciso
ao definir que se
conhece a árvore pelo
fruto. Mais
especificamente, “Assim,
toda a árvore boa produz
bons frutos, e toda a
árvore má produz frutos
maus. Não pode a árvore
boa dar maus frutos; nem
a árvore má dar frutos
bons. Toda a árvore que
não dá bom fruto
corta-se e lança-se no
fogo. Portanto, pelos
seus frutos os
conhecereis” (Mateus 7:
17-20). Em outras
palavras, podemos
identificar o caráter
das pessoas (a árvore)
através das suas obras,
feitos e opiniões (seus
frutos).
Analogamente, podemos
determinar a inclinação
de uma empresa pelos
valores organizacionais
que ela defende, assim
como pelas suas práticas
e ações concretas. A
guisa de exemplo, cabe
lembrar os tristes e
lamentáveis
acontecimentos recentes
ocorridos em Mariana e
Brumadinho, no estado de
Minas Gerais,
protagonizados por duas
importantes mineradoras,
e que culminaram com
mortes, destruição do
patrimônio privado, sem
falar dos danos causados
à natureza e ao meio
ambiente. Ambas empresas
tinham perfeita ciência
dos riscos que as suas
operações estavam
correndo, e, mesmo
assim, decidiram seguir
em frente desprezando os
sensatos alertas.
Infelizmente, episódios
semelhantes têm ocorrido
em outras partes do
mundo com organizações
de outros setores. Em
tais casos, o bem-estar
humano, é duro admitir,
tem pouco ou mesmo
nenhuma prioridade. O
mais paradoxal é que,
não raro, são empresas
que possuem programas de
responsabilidade social
e sustentabilidade,
entre outras
certificações, mas
implementados de maneira
instrumental, isto é,
sem a solidez e
comprometimento
necessários. Usam-nos
para lustrar a sua
imagem e reputação de
empresa séria, mas, na
prática, desprezam as
medidas indispensáveis
agindo com
irresponsabilidade.
Dado, assim, o amplo
papel representado pelas
instituições, como acima
aludido, torna-se vital,
então, que passem por
urgentes transformações
em seus modus
operandi. É
fundamental que abracem
seriamente a
responsabilidade social
de bem servir a
humanidade, bem como
contribuir para algo
maior, sem abdicar dos
seus legítimos
interesses empresariais.
As organizações humanas
precisam incorporar
outro ethos, ou
seja, o espiritual. Como
parte integrante da obra
divina necessitam de
intensa lapidação moral
para bem executar a sua
missão de atender às
necessidades humanas.
A relevância do tema
comporta ainda recordar
outro extraordinário
ensinamento de Jesus:
“Nem todo aquele que me
diz: Senhor, Senhor!
entrará no reino dos
céus, mas apenas aquele
que faz a vontade de meu
Pai, que está nos céus”
(Mateus 7:21). A clara e
expressa vontade de Deus
é que sejamos seres
melhores e mais
fraternos. Amar a Deus e
ao próximo são
mandamentos celestiais
que não deixam qualquer
dúvida a respeito. Desse
modo, os transgressores
das leis e os executivos
negligentes ou
criminosos não devem
esperar no além-túmulo
por benefícios aos quais
não fizeram jus. Todos
nós daremos contas de
nossa administração
perante a
espiritualidade cedo ou
tarde como vaticinou
Jesus. No mesmo
diapasão, outra eminente
entidade espiritual
também alerta: “[...]
Todos somos senhores de
nossas criações e, ao
mesmo tempo, delas
escravos infortunados ou
felizes tutelados.
Pedimos e obteremos, mas
pagaremos por todas as
aquisições. A
responsabilidade é
princípio divino a que
ninguém poderá fugir”.[10] Para
o nosso próprio bem,
oxalá que nos
apresentemos do lado de
lá no momento oportuno
carregando um bom
capital espiritual.
Por fim, vale ressaltar
que a concepção de
responsabilidade social
corporativa se assenta
plenamente nos
postulados espíritas de
busca incessante da
evolução, aliás, como
qualquer outro conceito,
teoria ou prática que
vise o bem-estar humano,
o aperfeiçoamento das
instituições e a
preservação do planeta.
Notas
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3. Fyke,
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May, S.K. (2016).
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righting the business←→
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121(2), 217-224.
4. Hogan,
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Biberman, J. & Whitty,
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CA: Stanford University
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6. Xavier,
F.C. (Pelo Espírito
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de Luz. 4ª
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RJ: FEB, p. 153.
7. Kardec,
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Gênese.
53ª edição. Brasília,
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8. Kardec,
A. (2013). O Livro
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9. Idem,
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