A ilusão da eternidade carnal
As dores têm muito a ver com as disposições
psicológicas de cada indivíduo
“Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está,
ó inferno, a tua vitória?” Paulo.
(I Cor., 15:55.)
Nossos
irmãos da Reforma Luterana gostam muito de citar
o Salmo 23:1 e 4 que diz: “o
Senhor é meu Pastor e não me faltará. Ainda que
eu andasse pelo vale da sombra da morte não
temeria mal algum, porque tu estás comigo”.
Jesus, o Mestre
Incomparável afirmou: “se
alguém guardar a minha palavra, nunca verá a
morte”.
Em que pesem todos esses esclarecimentos, todas
essas verdades tão acessíveis ao entendimento
das pessoas, por que a morte é, ainda hoje,
considerada a pior coisa que pode acontecer,
mormente quando leva os mais moços?!
A resposta nos faz pender para a questão do
caldo cultural e reduz-se a pura questão de
educação. O homem ocidental vive iludido dentro
de uma fictícia “eternidade carnal” e a
morte não faz parte de seus planos imediatos, só
prestando-lhe atenção quando por ela é atingido
mais de perto na pessoa de algum afeto. As
criaturas, despreparadas para esse evento
natural, destrambelham-se emocionalmente quando
chamadas ao testemunho.
Diz um amigo
espiritual: “(...)
quem considerou e se preparou para o
acontecimento, logo se adapta após o choque
inicial, como é compreensível. Entanto, para
aquele que ao corpo delegou todos os interesses,
a surpresa é substituída pelo desgosto ante o
sucedido, acompanhado por injustificável
revolta, que causa males insuspeitados”.
Sanson, ex-membro
da Sociedade Espírita Parisiense, lega-nos uma
belíssima página na
qual relata o seguinte: “(...)
quando a morte ceifa nas vossas famílias,
arrebatando, sem restrições, os mais moços antes
dos velhos, costumais dizer: Deus não é justo,
pois sacrifica um que está forte e tem grande
futuro e conserva os que já viveram longos anos
cheios de decepções; pois leva os que são úteis
e deixa os que para nada mais servem; pois
despedaça o coração de uma mãe, privando-a da
inocente criatura que era toda a sua alegria.
Humanos, é nesse ponto que precisais elevar-vos
acima do terra a terra da vida, para
compreenderdes que o bem, muitas vezes, está
onde julgais ver o mal, a sábia previdência onde
pensais divisar a cega fatalidade do destino.
Por que haveis de avaliar a justiça divina pela
vossa? Podeis supor que o Senhor dos mundos se
aplique, por mero capricho, a vos infligir penas
cruéis? Nada se faz sem um fim inteligente e,
seja o que for que aconteça, tudo tem a sua
razão de ser. Se perscrutásseis melhor todas as
dores que vos advêm, nelas encontraríeis sempre
a razão divina, razão regeneradora, e os vossos
miseráveis interesses se tornariam de tão
secundária consideração, que os atiraríeis para
o último plano.
(...) Em vez de vos queixardes, regozijai-vos
quando praz a Deus retirar deste vale de
misérias um de Seus filhos. Não será egoístico
desejardes que ele aí continuasse para sofrer
convosco? Ah! essa dor se concebe naquele que
carece de fé e que vê na morte uma separação
eterna. Vós, espíritas, porém, sabeis que a alma
vive melhor quando desembaraçada do seu
invólucro corpóreo. As dores desarrazoadas os
afligem, porque denotam falta de fé e exprimem
uma revolta contra a vontade de Deus”.
Joanna de Ângelis
complementa:
“a impermanência de todas as coisas e pessoas no
mundo físico é também extensiva à conjuntura do
sofrimento. A sua vigência resulta da
intensidade dos fatores causais que o
engendraram.
O campo de energia afetado, no caso das doenças,
terminada a prova ou a expiação que depuram,
recompõe-se, facultando o equilíbrio. Não
obstante, os sofrimentos morais, quando a
desarmonia é emocional, por meio do
autocontrole, da oração, da meditação, das ações
de beneficência, o ser mais facilmente se
libera, deixando de valorizar demasiadamente as
ocorrências aflitivas, considerando-as naturais
no processo evolutivo e, por consequência,
aceitáveis.
A aceitação do sofrimento é o passo decisivo
para a liberação dele, enquanto a rebeldia
produz efeito totalmente contrário.
Compreendendo que o corpo é uma organização
delicada, sujeita a deterioramento, desgaste e
transformação pelo fenômeno da morte, nele não
se colocam as bases da vida, nem se fixam as
realidades essenciais. Assim, quando lhe sucedam
desconexões e os desajustes, lhe advindo a
interrupção, a morte não se transforma em motivo
de desgraça, de ruína. A conveniente preparação
para enfrentar a morte faculta uma aceitação do
seu fatalismo e, portanto, uma diminuição do
sofrimento.
Quem deposita na vida material todas as suas
aspirações e nela vê um fim único,
constatando-lhe a interrupção, o cessar de
manifestações, experimenta superlativas dores
morais, que se transformam em sofrimentos
físicos sem lenitivo imediato. Assim, as dores
têm muito a ver com as disposições psicológicas
de cada indivíduo, a maneira de encarar a vida e
a sua estrutura, os acontecimentos e as suas
matrizes.
A morte, por ignorância da vida, tem sido
através dos milênios a causa de sofrimentos
inimagináveis, desencadeadora de tragédias e de
desconfortos sem-fim. Ora, todo fenômeno
biológico que se inicia, naturalmente cessa...
Tudo que nasce, no plano físico, interrompe-se,
transforma-se, portanto, morre. Assim, a morte é
inevitável, mas o sofrimento que dela resulta é
tão somente uma questão da má interpretação dos
reais objetivos da vida.
O apego à forma transitória, que se decompõe,
produz a perturbação emocional, dando ideia de
que tudo se consumiu nada mais restando como
finalidade da existência humana.
As pessoas se ligam a correntes religiosas sem
vinculação emocional nem aprofundamento racional
de seu conteúdo e, por negarem-se a uma análise
profunda em torno da vida, passam a existência
corporal transferindo reflexões no tempo e “fruindo” ao
máximo, sob a conivente ilusão da eternidade
carnal.
O corpo, mesmo quando saudável, é um cárcere, e
a libertação de um ser amado que volve à
plenitude deverá causar alegria e não desgosto.
Constituem fenômenos naturais a dor da saudade,
a melancolia, a preocupação com o estado do ser
que partiu, como decorrência de necessárias
provações para o amor, que precisa sublimar-se
através da ausência física e de todas as
implicações dela decorrentes. Como a
verdadeira e real felicidade não se pode fruir
no mundo físico, dia chegará, logo mais, para
vivê-la, onde não haja morte, nem separação, nem
dor... Assim, deve-se viver, preparando-se para
morrer, meditando na morte, a fim de lhe não
sofrer a injunção aflitiva, evitando o desespero
e todo o seu séquito de agentes perturbadores”.
-
BÍBLIA,
N.T. João.
Português. O novo testamento.
Tradução de João Ferreira de Almeida.
Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica
Brasileira, 1983, cap. 8, vers.
51.
-
KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o
Espiritismo. 129.ed. Rio [de
Janeiro]: FEB, 2009, cap. V, item 21.