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por Juan Carlos Orozco

 

Os inimigos do homem serão os seus familiares 


“E assim os inimigos do homem serão os seus familiares.”
 (Mateus, 10:36)


Esta passagem evangélica não é de fácil compreensão, porquanto a intepretação literal desvia-nos do verdadeiro sentido moral e espiritual dos ensinamentos de Jesus.

Poderíamos inferir que ela conteria algum erro de tradução, de transcrição ou de entendimento em relação aos demais textos evangélicos, tendo em vista que o Cristo não deixou relato e os evangelhos foram escritos tempo depois de sua morte e ressurreição.

Sem considerar as hipóteses anteriores, preciso buscar esclarecimentos que se harmonizem com os ensinos de Jesus, segundo a ótica da Doutrina Espírita.

Importante destacar que o Espiritismo procura reviver a mensagem cristã em seu sentido moral, espiritual e atemporal, afastando a interpretação literal e dogmática.

Antes, porém, para melhor entendimento, cabe ressaltar certos princípios doutrinários do Espiritismo que auxiliarão as necessárias elucidações.

Os ensinamentos e exemplos de Jesus nos evangelhos demonstram a imortalidade do Espírito, que sobrevive à morte do corpo físico rumo à vida eterna. Ou seja, a vida espiritual continua em outra dimensão.

Os Espíritos Superiores, que participaram da Codificação Espírita, ensinaram sobre a vida futura em pluralidade de existências mediante reencarnações sucessivas, cuja crença é indutora para a maneira como conduzir a vida material, pois as ações praticadas, boas ou ruins, pela lei de causa e efeito, trazem consequências para o caminho que se pretende trilhar no processo evolutivo a caminho da perfeição.

Se assim não fosse, porque o ser humano deveria praticar o bem, amar a Deus sobre todas as coisas, amar ao próximo como a si mesmo, amar o inimigo, reconciliar-se com o adversário enquanto está com ele no caminho, orar por quem lhe persegue, odeia, ofende, ou praticar o perdão incondicional, diante de uma vida que terminaria com a morte do corpo físico.

Sem a crença na vida futura, o ser humano focaria todos seus esforços e pensamentos na vida terrena e na aquisição de bens materiais transitórios, em que aquisições de virtudes e atributos morais e espirituais ensinadas pelo Mestre Jesus de nada valeriam.

Se vivo uma vida inteira de sofrimentos e aflições, quando serei consolado?

Se errei até o fim da minha vida, quando poderei reparar as minhas faltas?

O destino seria regido por penas eternas, sem qualquer oportunidade de recomeçar, regenerar e evoluir? Onde estaria a justiça, a bondade e a misericórdia de Deus?

Então, por que cultuar o amor, a fé, a esperança, o perdão e o consolo?

Nesse contexto, os ensinamentos dos Evangelhos não teriam sentidos de se praticar.

Daí fundamental crer na imortalidade do Espírito, na reencarnação e no planejamento reencarnatório, cujos entendimentos dão sentido às passagens evangélicas.

Outro aspecto doutrinário a considerar é a união familiar por laços biológicos e espirituais.

Os laços sociais são necessários para o progresso da Humanidade, e o laço de família, que é lei da Natureza, contribui para esse progresso. Quis Deus que, por essa forma, os homens aprendessem a amar-se como irmãos.

Os laços consanguíneos não criam forçosamente união entre Espíritos. O corpo procede do corpo, mas o Espírito não procede do Espírito, porquanto todos os Espíritos são criados por Deus e não há reprodução espiritual. Na reencarnação, o Espírito já existia antes da formação do corpo.

Por conseguinte, os pais não criam o Espírito do filho. No entanto, eles fornecem o invólucro corpóreo, cumprindo-lhes auxiliar no desenvolvimento intelectual e moral do filho para fazê-lo progredir.

Pela Doutrina Espírita, os que encarnam numa família, sobretudo como parentes próximos, são, as mais das vezes, Espíritos simpáticos, ligados por anteriores relações, que se expressam por uma afeição recíproca na vida terrena.

Espíritos da mesma categoria, do mesmo caráter e dos mesmos sentimentos formam grupos e famílias, sendo incalculável o número de Espíritos que os compõem.

Quis Deus que os seres se unissem não só pelos laços da carne, mas também pelos da alma.

Mas também pode acontecer sejam completamente estranhos uns aos outros esses Espíritos, afastados entre si por antipatias igualmente anteriores, que se traduzem na Terra por um mútuo antagonismo, que aí lhes serve de provação, os quais se reencontram para os ajustes e reajustes indispensáveis.

Esse tipo de laços espirituais resulta de resoluções do planejamento reencarnatório, arrastando débitos que as circunstâncias constrangem a revisar naquela família, cujos alicerces se consolidam na esfera terrestre e prolongam-se no plano espiritual, por ensinarem que as ligações humanas respeitáveis objetivam redimir almas.

Para o Espiritismo, os verdadeiros laços de família são os espirituais, que prendem os Espíritos antes, durante e depois de suas encarnações.

Portanto, na família, os laços espirituais podem ser formados por Espíritos unidos pela afeição, simpatia e semelhança de inclinações, felizes por estarem juntos. Dessa afinidade espiritual, uns podem seguir os outros na encarnação, reunindo-se em uma mesma família para trabalharem pelo mútuo adiantamento. Por conseguinte, movidos pelo amor, os que estão mais adiantados auxiliam os retardatários a progredirem, no sentido de voltar e ajudar os que se atrasaram.

Em outro contexto, os laços espirituais de família podem ser formados por desafetos, divididos por desavenças anteriores, servindo-lhes de provação. Isso porque, depois de uma existência, o Espírito leva consigo as paixões e os ressentimentos de existências passadas.

Contudo, o Espírito aperfeiçoa-se no Espaço até que deseje receber a luz. Após o tempo de meditação, o Espírito ressentido aproveita a oportunidade para renascer na família do desafeto para viver nova chance de progresso.

As vidas não se cruzam ao acaso, pois forças superiores impelem uns para com outros para cumprir as ações da providência divina. É assim que se deve compreender a família unida por laços espirituais, que vai além dos laços biológicos.

Voltando à interpretação da passagem evangélica, tendo por base o Estudo Aprofundado da Doutrina Espírita, Ensinos e Parábolas de Jesus – Parte I, “Ensinos diretos de Jesus”, Módulo II, Roteiro 3, “Não vim trazer paz, mas espada”, da Federação Espírita Brasileira (FEB), temos uma interpretação doutrinária.

As pessoas que se desentenderam em outras reencarnações estão hoje, em geral, congregadas dentro de uma mesma família, buscando o resgate e a harmonização indispensáveis, diante das leis divinas.

No âmbito familiar, os inimigos ou adversários agem e reagem uns sobre os outros, criando obstáculos à união e ao respeito mútuos, ainda que disso não se deem conta.

Pela misericórdia divina e pelo véu do esquecimento, os envolvidos nos processos de reajuste espiritual dificilmente recordam os acontecimentos do passado, ocorridos em outras existências.

Entretanto, as antipatias, os ódios, os ciúmes e as desconfianças são impulsivamente manifestadas, a ponto de ocorrerem separações, perseguições e outros problemas.

Por outro lado, é comum constatar que muitos parentes desenvolvem convivência harmoniosa com estranhos ao ninho familiar.

A pessoa esclarecida sobre as causas dessas inimizades aprende a administrar as desarmonias com humildade e, aos poucos, percebe que as dificuldades podem ser reduzidas ou eliminadas. Tal entendimento conduz à ação cristã que, tendo como base o perdão, a renúncia e a bondade, auxilia na superação de obstáculos e o polimento de arestas, úteis à manutenção do equilíbrio nas relações familiares.

Nesse contexto, “os inimigos do homem” como familiares é uma provação e oportunidade de renascer e reencontrar o antigo desafeto para os ajustes e reajustes indispensáveis, reparando as faltas do passado e vivendo nova chance de progresso moral e espiritual.

Há de se considerar, ainda, a presença dos inimigos que trazemos dentro de nós, representados pelas próprias imperfeições, más tendências e outras deficiências que conspiram contra a saúde e obstruem a manifestação da felicidade integral.

Esses inimigos internos, que imperam no psiquismo, são elementos complexos que precisam ser desativados, perturbam a paz de Espírito, atormentando a existência.

Assim sendo, inimigos de outras existências reencontram-se na mesma família pela reencarnação para reparar faltas e desavenças do passado, que auxiliarão a estabelecer uma nova base moral e espiritual de laços de família por meio do arrependimento, do perdão incondicional, da reconciliação e dos princípios de fraternidade, solidariedade e igualdade.

A renovação espiritual representa a caridade essencial que devemos ter para conosco e com todos os familiares, reconciliando e apaziguando-se com os inimigos que afetam o ninho doméstico.


Bibliografia:

ABREU, Honório Onofre de (Coordenador). Luz imperecível; Estudo Interpretativo do Evangelho à Luz da Doutrina Espírita. 1ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira; Belo Horizonte/MG: UEM, 2024.

BÍBLIA SAGRADA.

KARDEC, Allan; tradução de Guillon Ribeiro. O Evangelho Segundo o Espiritismo. 1ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira, 2019.

KARDEC, Allan; tradução de Guillon Ribeiro. O Livro dos Espíritos. 1ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira, 2019.

MOURA, Marta Antunes de Oliveira (organizadora). Estudo aprofundado da doutrina espírita: Ensinos e parábolas de Jesus – Parte I. Orientações espíritas e sugestões didático-pedagógicas direcionadas ao estudo do aspecto religioso do Espiritismo. 1ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira, 2016.


 

 

     
     

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 Revista Semanal de Divulgação Espírita