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por Rogério Coelho

 

Harmonia interior 


A conquista de si mesmo está ao alcance do querer para ser, do esforçar-se para triunfar.


“Sem a transformação interior profunda, o equilíbrio exterior será impermanente.” 
- Amélia Rodrigues[1]


Assiste toda razão à nobre mentora Amélia Rodrigues1 quando afirma ser “(...) Jesus o Construtor do Reino de Deus que convocou operários para a ação concreta e apresentou os planos no cenário ridente das paisagens humanas vivas, sem ocultar detalhes nem exagerar contornos...

Toda atividade partiria de dentro para fora do ser, produzindo renovação, e os métodos de ação, diferindo dos tradicionais, seriam fundamentados na mansidão, na humildade, na doação plena, e cimentados pelo amor”.

André Luiz[2] nos aconselha à vigilância ante as “(...) próprias manifestações, não nos julgando indispensáveis e preferindo a autocrítica ao autoelogio, recordando que o exemplo da humildade é a maior força para a transformação das criaturas.”

Segundo Ermance Dufaux[3] “(...) a resistência moral e a maturidade só serão alcançadas à custa de muito esforço e na medida de nossa capacidade individual de vencer a nós mesmos, embora alguns corações embevecidos pelo ideal da transformação de si mesmos esperam, ingenuamente, a "harmonia de empréstimo" ou "transformação por osmose" através de orações, tarefas, passes e outros benefícios de fortalecimento... Decerto, a misericórdia nunca escasseia e ampara a todos por esses meios, mas não pode em tempo algum mimar nossos pedidos para que não acostumemos a receber sem manifestarmos a decisiva coragem de enfrentar-nos.

A harmonia interior é o fruto sadio da valorosa semeadura de esforços autoeducativos exercidos no cumprimento fiel dos roteiros de crescimento.”

Joanna de Ângelis encerra magistralmente uma de suas obras[4], em um passeio filosófico pela história da humanidade, oferecendo-nos valiosos subsídios para o autoconhecimento e, consequentemente para a autoconquista, numa página intitulada: “Conquista de si mesmo” na qual ela expõe que a aquisição da consciência demanda tempo e esforço humano, tornando-se o grande desafio do processo da evolução do ser. Surgem-lhe os pródromos, na fase do instinto, abrindo espaço para a razão, como fenômeno natural do desenvolvimento antropológico-psicológico-sociológico da criatura.”

Continua a nobre Mentora4: “(...) o discernimento do bem e do mal, do certo e do errado, e as aquisições ético-morais aparecem, como se fossem o medrar espontâneo da essência divina de que é constituído o Espírito; todavia, o aprimoramento e a profundidade desses valores dependem do empenho, do interesse, das realizações de cada um.

Herdeiro dos arquétipos remotos dos seus antepassados, o indivíduo mantém por atavismos religiosos e culturais a consciência de culpa, especialmente os ocidentais, vitimados pelas heranças judaico-cristãs, no que diz respeito à desobediência de Eva, no paraíso, e ao fratricídio cometido por Caim contra Abel.

divina punição de Deus pela rebeldia da mulher e pela insensatez do homem, que a seguiu no erro, responde pelo sofrimento que os acicata, assim como a expulsão do criminoso aumenta-lhe a angústia, dando-lhe margem ao ciúme doentio e à raiva, considerando a preferência injustificável de Deus por Abel, cujas oferendas mais O agradavam...

A absurda aceitação literal do texto bíblico, que tem um caráter simbólico, quiçá para demonstrar o momento em que surge a consciência, — quando o ser pode identificar o que deve, daquilo que não lhe é lícito realizar, saindo do automatismo do instinto para a seleção do discernimento racional, representados no mito da árvore do conhecimento do bem e do mal — devido a interpretações apaixonadas e fanáticas, gerou conflitos que ainda remanescem nas vidas psicologicamente imaturas.

Na fase do instinto, os fenômenos biológicos automáticos não se fazem acompanhar das dores, que são maiores conforme mais seja apurada a sensibilidade, qual sucede na ocorrência do parto, que passou a ser punição divina, tornando a procriação um verdadeiro castigo, fruto ainda da desobediência que, milenarmente, transformou a comunhão sexual em condenável e imunda, do ponto de vista puritano e hipócrita.

Fonte de vida, o sexo é o instrumento para a perpetuação da espécie, não sendo credor de qualquer condenação. O ultraje e a vulgaridade, a nobreza e a elevação amorosa mediante os quais se expressa, dependem do seu usuário e não da sua função em si mesma.

Igualmente a arbitrária eleição celeste de um por outro irmão, ambos gerados em circunstâncias iguais, teria que despertar sentimentos contraditórios, de ciúme e de raiva, no rejeitado, que levariam inevitavelmente ao hediondo fratricídio...

De geração em geração, a criança que se sentia desprezada, desenvolveu esses sentimentos perversos, perturbando o desenvolvimento da consciência e a consequente conquista de si mesmo.

Em qualquer atividade, competitiva ou não, o inconsciente desatrela a insegurança infantil, ali adormecida, e surgem os conflitos, a infelicidade, a desconfiança desastrosa.

Graças, porém, à reencarnação, o progresso do ser é imperioso, inevitável, e os mecanismos da evolução se expressam, trabalhando-o e promovendo-o a níveis e patamares cada vez mais elevados, até quando o ser, liberto dos conflitos, conquista os sentimentos que canalizará na direção de novas metas, que alcança realizando-se, plenificando-se...  Já não luta contra as coisas, mas luta pelas coisas, que aprende a selecionar e qualificar, abandonando, por superação, as paixões dissolventes e fixando os valores que enobrecem.

Percebendo-se instrumento da vida, que faz parte da harmonia do Universo, o indivíduo supera a raiva, por ausência do ciúme, e não compete para destruir, mas trabalha para fomentar o progresso, no qual se engaja e se realiza.

A conquista de si mesmo resulta, portanto, do amadurecimento psicológico, pela   racionalização dos acontecimentos, e graças às realizações da solidariedade, que facultam a superação das provas e dos sofrimentos, os quais passam então a ter um comportamento filosófico dignificante — instrumentos de valorização da vida — ao invés de serem castigos à culpa oculta, jacente no mundo íntimo.

A libertação dessa consciência doentia facilita o entendimento do mecanismo da responsabilidade no comportamento que estabelece o lema: a cada um conforme os seus atos, segundo ensinou o Terapeuta Galileu. Assim, senhor do discernimento, o homem descobre que colhe de acordo com o que semeia, e que tudo quanto lhe acontece, procede, não tendo caráter castrador ou punitivo.  Sente-se emulado a gerar novos futuros efeitos, agindo com consciência e produzindo com equidade. Tal conduta proporciona-lhe a alegria que provém da tranquilidade da realização, considerando que sempre é tempo de reparar, e postergação é-lhe prejuízo para a economia da sua plenificação.

O homem que se conquista supera os mecanismos de fuga, de transferência de responsabilidade, de rejeição e outros, para enfrentar-se sem acusação, sem justificação, sem perdão.  Descobre a vida e que se encontra vivo, que hoje é o seu dia, utilizando-o com propriedade e sabedoria. Não tem passado, nem futuro, neste tempo intemporal da relatividade terrestre, e a sua é uma consciência atual, fértil e rica de aspirações, que busca a integração na Cósmica, que já desfruta, vivendo-a nas expressões do amor a tudo e a todos intensamente.


A conquista de si mesmo é lograda mediante o querer


Jesus afirmou que se poderia fazer tudo quanto Ele fez, se se quisesse, bastando empenhar-se e entregar-se à realização. Para tanto, necessário seria a fé em si mesmo, nos valores intrínsecos, que seriam desenvolvidos a partir do momento da opção.

Francisco de Assis, o santo, assim quis e o conseguiu; apóstolos do bem, da ciência e da fé, do pensamento e da ação quiseram, e o lograram; homens e mulheres anônimos entregaram-se aos ideais que lhes vitalizaram as existências e, superando-se, autoconquistaram-se.

A conquista de si mesmo está ao alcance do querer para ser, do esforçar-se para triunfar, do viver para jamais morrer.” 

 


[1] - FRANCO, Divaldo. Trigo de Deus. Salvador: LEAL, 1993, cap. 7.

[2] - XAVIER, Francisco Cândido. Conduta espírita. 6.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 1978, cap. 18.

[3] - OLIVEIRA, Wanderley. Mereça ser feliz. 2.ed. Belo Horizonte: INEDE, 2002, cap. 25, p.127.

[4] - FRANCO, Divaldo. O ser consciente. Salvador: LEAL, 1994, p. 149-153.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita