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Ano 2 - N° 71 - 31 de Agosto de 2008

PAULO DA SILVA NETO SOBRINHO
pauloneto@ghnet.com.br
Guanhães, Minas Gerais (Brasil)


Kardec reencarnou como
Chico Xavier?


É bem pouco provável que o Espírito de Allan Kardec, se reencarnado como Chico Xavier, pudesse manifestar-se tantas vezes, como diversos autores e estudiosos registraram; eis aí o primeiro desafio a ser vencido pelos que advogam a tese
de que eles sejam o mesmo Espírito

 

Volta e meia esse tema, polêmico por sinal, é comentado no meio Espírita. Livros a favor da tese ou contra ela estão à disposição dos que se interessam pelo assunto. Podemos até tratá-la como uma possibilidade; mas, para defini-la, é necessário resolver dois pontos:

1 – que o espírito de uma pessoa viva possa manifestar-se;
 

2 – que, em se manifestando, dadas as condições necessárias para isso, o espírito encarnado possa assumir a personalidade anterior que lhe é atribuída.

Bom, o primeiro ponto, na verdade, já está resolvido, pois o próprio Kardec narra, na Revista Espírita, casos de manifestação de pessoas vivas. Na do ano 1860, p. ex., há muitos exemplos notáveis de evocação de pessoas vivas; porém, para que isso ocorra, é necessário que o encarnado não se encontre em estado de vigília, conforme nos explicou o codificador (KARDEC, 2001, p. 138).

Em março de 1860, publica o artigo “Estudo sobre os espíritos de pessoas vivas”, no qual se reporta à evocação do Dr. Vignal, para estudo desses casos (p. 81-88). Provavelmente o resultado é o que consta no Livro dos Médiuns, Cap. XXV – Das evocações, item 284 - Evocação das pessoas vivas, do qual transcrevemos estas questões:

38ª Pode evocar-se o Espírito de uma pessoa viva?

"Pode-se, visto que se pode evocar um Espírito encarnado. O Espírito de um vivo também pode, em seus momentos de liberdade, se apresentar sem ser evocado; isto depende da simpatia que tenha pelas pessoas com quem se comunica."

39ª Em que estado se acha o corpo da pessoa cujo Espírito é evocado?

"Dorme, ou cochila; é quando o Espírito está livre."

43ª É absolutamente impossível evocar-se o Espírito de uma pessoa acordada?

"Ainda que difícil, não é absolutamente impossível, porquanto, se a evocação produz efeito, pode dar-se que a pessoa adormeça; mas, o Espírito não pode comunicar-se, como Espírito, senão nos momentos em que a sua presença não é necessária à atividade inteligente do corpo." (KARDEC, 2007, p. 384-392).

Assim, podemos dizer que é certa a possibilidade da manifestação de um espírito encarnado; entretanto, haverá uma condição para que isso aconteça, qual seja a de estar numa situação em que a presença do espírito não esteja sendo necessária à atividade inteligente do corpo físico.

Em relação ao segundo ponto, vemos essa informação:

45ª Evocado o Espírito de uma pessoa viva, responde ele como Espírito, ou com as idéias que tem no estado de vigília?

"Isso depende da sua elevação; porém, sempre julga com mais ponderação e tem menos prejuízos, exatamente como os sonâmbulos; é um estado quase semelhante." (KARDEC, 2007, p. 387-388).

A situação aqui é do espírito evocado, não diz nada sobre a sua livre manifestação. E o fato de responder como Espírito não quer dizer que assuma a sua personalidade anterior. Concluímos, portanto, que não temos informações seguras para afirmar que isso possa acontecer.

Tudo o que estamos colocando tem razão de ser, pois há manifestações do espírito de Kardec na mesma época que Chico estava encarnado. O que nos levaria a crer que, nesse caso, teria havido a manifestação de um espírito de pessoa viva.

Eduardo Carvalho Monteiro, em Allan Kardec (o druida reencarnado), narra o seguinte:

Na obra O Gênio Céltico e o Mundo invisível do mestre Léon Denis, só há pouco tempo disponível ao público brasileiro, o autor reproduziu uma série de mensagens do Espírito de Allan Kardec que, em verdade, escreveu a parte final de O Gênio Céltico. Madame Baumard, esta que o acompanhou nos últimos anos de vida como sua secretária, assim descreveu o processo criativo do grande escritor: “Durante os anos de 1926-1927, Denis manteve constantes contatos com o invisível. O interesse de Allan Kardec para com a obra em elaboração era “intenso”: apresentava-se a cada quinze dias e se encarregou, por ditado mediúnico, da parte final do livro” (MONTEIRO, 1996, p. 74).

O biógrafo André Moreil, em Vida e Obra de Allan Kardec, afirma: “Na segunda-feira da Páscoa de 1910, no centro “Esperança” de Lião, por intermédio da Srta. Bernadette em estado de sonambulismo, Allan Kardec manifestou-se para agradecer ao que fora até então o seu único biógrafo, o espírita Henri Sausse” (MOREIL, 1986, p. 174). Conforme nos informa Garcia “a Páscoa de 1910 coincide exatamente com o retorno ao corpo físico do Espírito que hoje conhecemos por Chico Xavier. Como se sabe, Chico nasceu em 2 de abril de 1910.” (GARCIA, 1999, p. 141). Assim, essa manifestação já seria de um espírito de um vivo. Nesse autor também encontramos:

Os registros de comunicações dadas por Kardec já na condição de Espírito fora do corpo físico não ficam apenas no período imediatamente posterior à sua desencarnação. Avançamos no tempo e uma dessas mensagens merece destaque, apesar de ser bem conhecida dos estudiosos. Foi dirigida ao extraordinário filósofo Léon Denis no ano de 1925 (mais uma vez, anote o leitor a data), contendo um veemente apelo de Kardec para que comparecesse ao congresso espiritualista daquele ano, em virtude da importância do evento para o Espiritismo. [...] (GARCIA, 1999, p. 143).

De fato, em Herculano Pires se confirma isso:

Em 1925, quando se reuniu em Paris o Congresso Espiritualista Internacional, o próprio Kardec, através de comunicações mediúnicas teve de forçar Léon Denis, já velho e cego, a sair de Tours, na província, para defender o Espiritismo dos enxertos que lhe pretendiam fazer os representantes de várias tendências, como a aceitação ingênua de ilustres mas desprevenidos militantes espíritas. [...]”. (PIRES, 1978, p. 13-14).

Informa-nos também Garcia que “Wantuil e Thiesen reproduzem, ainda, na mesma obra [Allan Kardec], uma mensagem transmitida por Kardec no dia 14 de junho de 1979, no Grupo Espírita Ismael, do Rio de Janeiro. A íntegra do documento aparece ao final do volume III, fechando a biografia. (GARCIA, 1999, p. 146).

Ao que tudo indica não é de hoje essa de se querer apontar alguém como sendo Kardec reencarnado; vejamos, novamente, em Garcia:

Devemos registrar um outro fato. Denis faz uma anotação interessante no livro, a respeito de uma notícia que então se divulgava, dando conta de que Kardec estaria na época reencarnado. Ora, isso demonstra como a questão é antiga. Denis escreveu o livro em 1927, quando Chico estava com 17 anos de idade e dava início à sua tarefa mediúnica. Já havia na ocasião aqueles que admitiam estar Kardec reencarnado mas não como Chico, note-se! Era ele um francês, com cerca de 30 anos de idade, portanto, teria reencarnado antes do novo século. Eis o registro de Denis: “Uma outra objeção consiste em pretender que Allan Kardec está reencarnado no Havre, desde 1897. Trinta anos teriam se passado de sua nova existência terrestre. Ora, pode-se admitir que um espírito deste valor tenha esperado tão longo tempo para se revelar por obras ou ações adequadas? Além disso, Allan Kardec não se comunica unicamente em Tours, mas também em muitos outros grupos espíritas da França e da Bélgica. Em todos esses lugares ele se afirma pela autoridade de sua palavra e a sabedoria de seus conhecimentos” (O Gênio Céltico, p. 220). (GARCIA, 1999, p. 145)

O que podemos concluir disso tudo é que é bem pouco provável que o espírito de Kardec, se reencarnado como Chico, pudesse manifestar-se tantas vezes como se menciona. Para aceitarmos a tese seria imprescindível levantar todas elas, especificando dia e hora, para ver se Chico, naqueles momentos nos quais Kardec se manifestava, estava dormindo ou numa situação na qual o seu espírito não precisasse comandar seu corpo físico. Fica aí o primeiro desafio para os que advogam essa tese.

Por outro lado, na possibilidade disso ter ocorrido, ainda resta um outro desafio a ser vencido que seria o de desmentir o próprio Chico, pois, nessa hipótese levantada, após emancipar-se do corpo ele teria que, de forma totalmente consciente, como acontece com os desencarnados, ter assumido a personalidade anterior para se manifestar. Ora, isso nos leva à situação de que Chico deveria se lembrar dessa “mudança”. Então, como explicar que no dia 28 de agosto de 1988, em entrevista ao jornal Diário da Manhã, de Goiânia, respondendo à pergunta se seria Kardec reencarnado ele disse: “Consulto a minha via psicológica, as minhas tendências. Tudo aquilo que tenho dentro do meu coração é eu. Não tenho nenhuma semelhança com aquele homem corajoso e forte que, em doze anos, deixou dezoito livros maravilhosos. [...]” (COSTA E SILVA, 2004, p. 115-116).

Assim, quem ainda quiser manter a idéia de que Kardec reencarnou como Chico Xavier deve resolver esses dois desafios, que, acreditamos, resolvem de vez a questão. 
 

Referências bibliográficas:

COSTA E SILVA, L. N. Chico Xavier, o mineiro do século. Bragança Paulista, SP: Lachâtre, 2004.

GARCIA, W. Chico você é Kardec? Capivari, SP: EME, 1999.

KARDEC, A. Revista Espírita 1859. Araras, SP: IDE, 2001.

KARDEC, A. Revista Espírita 1860. Araras, SP: IDE, 2000.

KARDEC, A. Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 2007.

MONTEIRO, E. C. Allan Kardec (o druida reencarnado). São Paulo: Eldorado/Eme, 1996.

MOREIL, A. Vida e Obra de Allan Kardec. São Paulo: Edicel, 1986.

PIRES, H. J. Na hora do testemunho. São Paulo: Paidéia, 1978.
 


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