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Ano 2 - N° 76 - 5 de Outubro de 2008

JÁDER SAMPAIO
jadersampaio@uai.com.br
Belo Horizonte, Minas Gerais (Brasil)


Os fenômenos psíquicos entre a mediunidade, o inconsciente e a psicopatologia: considerações sobre um estudo de caso
de Carl G. Jung

 

 

“Não sei se aquilo que os espíritos me falam e me ensinam é verdadeiro, também não sei se eles são aqueles que dizem ser, mas que meus espíritos existem não há dúvida alguma. Vejo-os diante de mim, posso tocá-los, falo com eles sobre tudo que quero e de maneira tão clara e natural como estou falando agora. Evidentemente, eles existem.” S.W. (JUNG, 1993. p. 34) 

1. Apresentação do caso 

“Um caso de sonambulismo com carga hereditária” é o nome de uma publicação do Dr. Carl G. Jung (foto) que tem por objetivo  a  análise  dos  fenômenos e da

personalidade de uma suposta médium (identificada a partir das iniciais S.W.) que foi acompanhada no período que compreende 1899 e 1900. Curiosamente, não se trata de uma paciente, mas de um parente que vai sendo estudado em reuniões mediúnicas que Jung freqüentara.

S.W. possuía na época cerca de quinze anos, era de família protestante e possuía diversos casos de familiares com alterações psicopatológicas (avô paterno, tio-avô, avó e irmãs, por exemplo), mas que, ao mesmo tempo, sugeriam visões, profecias e sonambulismo. Era franzina, raquítica, com rosto pálido e nunca apresentara doenças graves. Seu desempenho na escola era medíocre, seu comportamento desatento e pouco interessado, reservado quase sempre, mas com reações isoladas de euforia. Não gostava de leitura e música, preferindo trabalhos manuais ou “sonhar”. Errava ao ler, o que fazia com que os irmãos zombassem dela. Seus conhecimentos literários eram reduzidos (alguns poemas de Schiller, Goethe, salmos, novelas baratas e revistas). A família de S.W. era composta de trabalhadores braçais e comerciantes “com interesses limitados” e sua mãe é descrita pelo autor do artigo como “inconseqüente, vulgar e às vezes brutal”.

Em julho de 1899 ela participou de algumas reuniões de mesa falante com amigos e irmãos, quando se descobriu que era médium. A partir daí e durante um ano apresentou uma fenomenologia variada, que sintetizaremos rapidamente, e após o entusiasmo inicial dos participantes da reunião, foi caindo em descrédito, tendo sido flagrada carregando pequenos objetos no corpete para simular fenômenos de “apport”. Após estes eventos ela parou de freqüentar sessões espíritas e tornou-se funcionária de uma casa comercial, tornando-se “mais quieta, comedida e simpática” e trabalhando com zelo e capacidade. Estas últimas informações, Jung obteve de oitiva. Em uma leitura atenta do relato, observa-se um certo menosprezo que o autor possui pela médium e até mesmo sua família. Nota-se claramente a influência de autores como Flournoy, Binet e Janet que buscaram, cada um de forma própria, caracterizar os fenômenos espíritas como manifestações psicopatológicas. 

2. Fenômenos com S.W. que sugerem a existência de mediunidade 

Certos fenômenos descritos por Jung sugerem que S.W. realmente possuísse alguma faculdade mediúnica. Em suas primeiras sessões ela conseguia fazer com que um copo emborcado se movimentasse e, com o auxílio de letras recortadas e dispostas ao seu redor, produzisse mensagens inteiras, algumas em ordem direta e outras ditadas ao contrário, “produzidas de forma tão rápida que só era possível captar seu conteúdo posteriormente, ao inverter as letras” (JUNG, 1993. p. 37) Inicialmente, também, ela obtivera comunicações do avô, que ela não conhecera pessoalmente, e cujo conteúdo impressionara os freqüentadores e sua própria família. Uma das entidades manifestantes (Ulrich von Gerbenstein) comunicava-se em um alemão quase impecável, com sotaque do Norte da Alemanha (p. 42), distintamente ao modo de falar da suposta médium. Jung tenta explicar este fenômeno como uma “cópia perfeita do senhor P.R.”, que era um membro da reunião (JUNG, 1993. p. 42).

A autora apresentava “amnésia” (ou desconhecimento?) com relação ao produto dos fenômenos automáticos ocorridos durante o êxtase. Embora não se possa concluir pela tese da mediunidade apenas com este fenômeno, associado aos demais ele é bem sugestivo. Finalmente, ocorreram fenômenos que Allan Kardec denominava “mesas girantes”. “As últimas sessões começavam em geral com a colocação de nossas mãos juntas sobre a mesa que imediatamente começava a movimentar-se” (JUNG, 1993. p. 43). 

3. Fenômenos psicológicos e psicopatológicos de S.W. 

Muitos foram os fenômenos que, entrelaçados aos mediúnicos, sugerem a ação do psiquismo e do inconsciente de S.W. Selecionamos alguns que nos fornecem base para algumas considerações.

Uma primeira situação diz respeito às características do tom de voz de S.W., que indicam que a médium se sentia na obrigação de apresentar uma voz para cada entidade que se apresentava. “O tom de voz tinha um quê de artificial e forçado que só foi assumindo naturalidade à medida que se aproximava, no decorrer da conversa, da voz do médium (em sessões posteriores a voz só se alterava por alguns momentos, quando se manifestava novo espírito).” (JUNG, 1993. p. 38)

S.W. leu o livro “A vidente de Prevorst”, clássico do magnetismo alemão escrito pelo Dr. Justinus Kerner, que trata dos fenômenos mediúnicos e doenças de Frederica Hauffe. Desde então, incorporou à sua prática alguns elementos (alguns deles bem esquisitos) que se achavam registrados (autopasses em forma de oito, afirmou-se a reencarnação de Frau Hauffe, alegou que sua missão era ensinar e melhorar os espíritos negros que são banidos de determinados lugares ou que se encontram sob a superfície da Terra (assim como a vidente, entre outros).

Tendo notícias de Florence Cook (médium inglesa) e William Crookes (pesquisador inglês), passou a chamá-los de irmãos. Apresentava reações emocionais exageradas às comunicações mediúnicas, o que não seria de estranhar em um adolescente, mas que Jung considera como certa labilidade emocional e, portanto, um traço histérico. “Eu disse aos espíritos que não queria, que não podia ser, que isto me cansava muito (começou a chorar): Ó Deus, será que tudo tem que recomeçar como da última vez? Não serei poupada em nada?” (JUNG, 1993. p. 39)

Muitas comunicações apresentavam informações grotescas, fantasiosas e às vezes incorretas, como a materialização da médium no Japão para impedir um casamento, uma declaração de amor de um suposto irmão de um dos participantes da reunião para uma participante que não o houvera conhecido em vida, o cotidiano dos habitantes de Marte, a mudança de teor de comunicações que eram desaprovadas pelo grupo, os relatos de encarnações passadas (amante de Goethe, Frederica Hauffe, dama da nobreza queimada como bruxa, mártir cristã, judia que recebera de um anjo a missão de ser médium) envolvendo quase todos os seus parentes e os membros do grupo em relações familiares.

Como os membros do grupo discutiam filosofia (Kant) e ela ficasse à parte nas conversas, produziu um improvável e confuso sistema místico composto de todas as forças existentes no universo, ordenadas em sete círculos. Não passou despercebido ao Dr. Jung que sua memória com relação aos fenômenos diretamente ligados ao Eu (falar em voz alta ou glossolalia, por exemplo) era perfeita, ao contrário da amnésia dos fenômenos automáticos. 

4. O diagnóstico de S.W. e as explicações dos fenômenos 

Jung a diagnosticou como histérica, com base nas anestesias, na leitura incorreta sem posterior reparo, nas substituições automáticas de associações e no que ele considera a “divisão histérica da consciência”, que, segundo ele, não chega a ameaçar a estrutura do Eu. As situações em que S.W. alterava seu estado de consciência foram compreendidas como “semi-sonambulismo” que Jung considera como sendo a atividade de uma subconsciência independente da consciência de si mesmo. Identifica-se aí uma antecipação do que iria se constituir na teoria dos complexos e dos arquétipos. “Visto sob este ângulo, todo o ser de Ivenes (1), juntamente com sua enorme família, nada mais é do que um sonho de realização de desejos sexuais que se distingue do sonho de uma noite pelo fato de prolongar-se por meses e anos.” (JUNG, 1993. p. 79)

Os fenômenos de mesa girante são explicados como o resultado de puxões ou empurrões automáticos da médium (descartada a hipótese de simulação), o que não explica satisfatoriamente a produção de mensagens com conteúdo e muito menos os fenômenos de copo descritos acima. A escrita automática de S.W. é compreendida como um sintoma da síntese de uma personalidade inconsciente, o que nos parece uma explicação parcial, mas não há descrição de conteúdos de mensagens no artigo que nos permita indicar a presença de informações corretas a que a médium não tivesse tido acesso.

As visões de S.W. são consideradas como alucinações e seriam fruto de hipnose, facilitada pelos fenômenos entópicos da escuridão. As mudanças de caráter são relacionadas às mudanças da puberdade, mas caracterizariam um distúrbio específico. Assim, Jung vai associando o avô de S.W. à sua educação na infância, os gracejos de Ulrich von Geberstein ao seu humor adolescente, e a sobriedade de Ivenes à manifestação da futura personalidade da jovem, que não se incorporara ao Eu devido a dificuldades especiais, como o relacionamento exterior desfavorável e uma certa disposição psicopática do sistema nervoso (?). (JUNG, 1993. p. 79) Com sua análise fundamentada em bons psicólogos e psiquiatras de sua época, o Dr. Jung vai colocando à parte no seu trabalho a possibilidade de existirem médiuns e de estes realmente se comunicarem com os espíritos das pessoas que morreram. Mediunidade vai sendo reduzida a mera psicopatologia, assim como Charcot fizera com o hipnotismo. 

5. Discussão do caso e da análise de Jung 

Não discutiremos nesta breve comunicação a existência da mediunidade mas a tomaremos como pressuposto para a discussão deste caso. Considerando S.W. como possuidora de faculdades mediúnicas, vê-se claramente que na sua prática se encontra também a manifestação de sua patologia e de seu inconsciente. Jung se ateve à análise destes dois últimos pontos com ardor, apresentando o que o movimento espírita de hoje denominaria como “componente anímico da mediunidade”.

Um dos pontos importantes das considerações deste psiquiatra diz respeito à construção da identidade de médium de S.W. Adolescente, com problemas familiares e sociais, passando pela crise que Erikson (1976) denominaria de identidade versus confusão de identidade, agravada por traços histéricos; a experiência de ser considerada médium e, de certa forma, admirada por isso pelos seus parentes e conhecidos, é extremamente gratificante para S.W. Ela parece ter se agarrado com “unhas e dentes” nessa possibilidade de reconstrução de sua identidade e não mediu esforços para absorver à sua prática alguns comportamentos apresentados por médiuns tidas como importantes (como Frederica Hauffe). O processo de identificação social é de tal forma patente, que S.W. se apresenta como a reencarnação da Sra. Hauffe. Este fenômeno é notado em reuniões mediúnicas dos dias de hoje, em menor escala, já que em grande número de casos não existe o componente psicopatológico. Merece ser melhor analisado, já que, como mostrou Jung, interfere claramente no conteúdo das comunicações com base em mediunidade intuitiva e suas variantes. A médium com traços histéricos fantasiava, tendo por tema o seu drama íntimo, que se encadeava, muitas vezes de forma a alterar substancialmente o conteúdo das mensagens. A necessidade de ser reconhecida, aceita e amada como médium, entre outros elementos, a colocou na situação de fraude. O desejo de ser respeitada levou-a a criar teorias esdrúxulas, cujos pontos de contato com seu próprio psiquismo não passaram despercebidos ao observador.

As comunicações da entidade chamada Ivenes merecem uma atenção especial. Para a teoria junguiana, ela é uma espécie de base para algumas de suas idéias centrais, como o processo de individuação, os arquétipos, a função transcendente, a teleologia do inconsciente, etc. É mais difícil de aceitar que uma adolescente histérica, que representava a fantasia de ser médium, seja capaz de criar uma personagem que se encaixa na descrição abaixo, que crer na mediunidade. “Ao falar com ela, tinha-se a impressão de estar falando com uma pessoa bem mais velha que chegou a uma atitude segura e equilibrada por causa de muitas experiências na vida.” (JUNG, 1993. p. 36)

O estudo do Dr. Jung abriu duas grandes frentes de trabalho no início do século: a primeira, para o meio acadêmico, sugere a necessidade de melhores estudos com os fenômenos mediúnicos e sua análise comparativa aos estudos patológicos e psicopatológicos. A segunda, para o movimento espírita, sugere o aprofundamento teórico e prático na compreensão dos fenômenos chamados anímicos e suas implicações na mediunidade. Passados quase cem anos, estas propostas continuam atuais e relevantes.

(1)
Ivenes é o nome de uma das entidades que se apresentava por S.W. 
 

Bibliografia: 

DENIS, Léon. No invisível. Rio de Janeiro: FEB, 1981. [traduzido por Leopoldo Cirne].

ERIKSON, Erik. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1976. HUMBERT, Elie G. Jung. São Paulo: Summus, 1985. [traduzido por Marianne Ligeti] JUNG, Carl G. Estudos psiquiátricos. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994.

__ Fundamentos de Psicologia Analítica. Petrópolis-RJ: Vozes, 1985.

__ A natureza da psique. Petrópolis-RJ: Vozes, 1986. KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 1978.

KERNER, Justinus. A vidente de Prevorst. Matão - SP: Clarim, 1979. [traduzido por Carlos Imbassahy]

MIRANDA, Hermínio C. Reencarnação e imortalidade. Rio de Janeiro: FEB, 1983. p. 181-202. 

 


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