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Ano 3- N° 106 – 10 de Maio de 2009

ROGÉRIO COELHO
rcoelho47@yahoo.com.br
Muriaé, Minas Gerais (Brasil)

 

Ensaio sobre as raízes das incoerências doutrinárias

 O Espiritismo é uma síntese dos esforços humanos para compreensão do mundo
e da vida
 

(1ª Parte)

"A fé ingênua, imposta pela autoridade e a tradição, derrete-se  como  cera  frágil, ao  fogo  da   razão.” - Herculano Pires
 

Emmanuel recomendou ao seu tutelado - Francisco Cândido Xavier - que dele se afastasse no momento em que dissesse algo diferente do que disse Jesus e Kardec. Infelizmente tal recomendação não tem sido observada por inúmeras criaturas que promovem em suas Casas Espíritas os mais absurdos despautérios doutrinários. Evidentemente  tal recomendação  é estendida a todos os

Rogério Coelho

espíritas para que jamais venhamos a acoroçoar modismos ditados pelos ancestrais atavismos, permeando o movimento e as Instituições Espíritas com práticas esdrúxulas, divorciadas da coerência doutrinária.  

Lamentavelmente já grassam loucuras de variegado matiz, graças à falta de estudos e ausência de sedimentação doutrinária de quem “aprendeu” Espiritismo de “ouvido”, sem o devido estudo das Obras Básicas...

Vamos buscar nas raízes das civilizações a explicação para tal estado de coisas, a fim de que possamos compreender como, apesar de toda a clareza da Doutrina Espírita, ainda existem tantos modelos ideológicos ultrapassados e comprometidos com a ignorância, corrompendo o meio espiritista, consequência lógica do comodismo e do misoneísmo dos invigilantes. 

Por falar em “raízes das civilizações”, devemos entender que os diversos patamares evolutivos espalhados pelas idades desde o início dos tempos até hoje são conhecidos como “horizontes”. No momento em que de nômade o homem passou às suas primeiras experiências sedentárias, temos aí o início do “horizonte agrícola” que localiza no tempo as idades mais primitivas pelas quais já passamos, mas, por incrível que pareça, ainda restam, mesmo nos dias de hoje, resquícios desse recuado “horizonte” como vamos ver na sequência de nossas despretensiosas elucubrações. Tais substratos é que geram os desacertos doutrinários com que nos vemos a braços hoje em dia, uma vez que os ancestrais atavismos são de difícil erradicação.

Escreveu Segundo Herculano Pires:

“(...) Mais de um século após o advento do Espiritismo reina ainda grande incompreensão a respeito da Doutrina, de sua própria natureza e de sua finalidade. A Codificação, entretanto, foi elaborada em linguagem clara, precisa, acessível a todos. À lucidez natural do espírito francês, Kardec juntava sua vocação e a sua experiência pedagógicas, além da compreensão de tratar com matéria sumamente complexa. Vemo-lo afirmar, a cada passo, que desejava escrever de maneira a não deixar margem para interpretações, ou seja, para divergências interpretativas...

Qual o motivo, então, por que os próprios adeptos do Espiritismo, ainda hoje, divergem, no tocante a questões doutrinárias de importância? 

O Espiritismo, segundo Kardec e seus principais continuadores, constitui a última fase do
processo do conhecimento
 

À maneira do Cristianismo, o Espiritismo abre caminho no mundo, enfrentando a incompreensão de adeptos e não-adeptos.

Em primeiro lugar, há o problema da posição da doutrina: Uns a encaram como sistematização de velhas superstições; outros, como tentativa frustrada de elaboração científica; outros, como ciência infusa, não organizada; outros ainda, como esboço impreciso de filosofia religiosa; outros, como mais uma seita, entre as muitas seitas religiosas do mundo. Para a maioria dos adeptos e não-adeptos, o Espiritismo se apresenta como simples “crença”, espécie de religião e superstição, ao mesmo tempo, eivada de resíduos mágicos...

Ao contrário de tudo isso, porém, o Espiritismo, segundo a definição de Kardec e dos seus principais continuadores, constitui a última fase do processo do conhecimento.  Última não no sentido de fase final, mas da que o homem pôde atingir até agora, na sua lenta evolução através do tempo. É evidente que se trata do conhecimento em sentido geral, não limitado a um determinado aspecto, não especializado...  Nesse sentido geral, o Espiritismo aparece como uma síntese dos esforços humanos para compreensão do mundo e da vida.   Justifica-se, assim, que haja dificuldade para a sua compreensão, apesar da clareza da estrutura doutrinária da Codificação. De um lado, o povo não pode abarcá-lo na sua totalidade, contentando-se com o seu aspecto religioso; de outro, os especialistas não admitem a sua natureza sintética; e de outro, ainda os preconceitos culturais levantam numerosas objeções aos seus princípios.

(...) Sendo o Espiritismo uma realidade histórica, afirmada pelo Codificador e seus sucessores, tem ele o seu passado e o seu presente, como terá o seu futuro. No tempo de Kardec, introduzir alguém no estudo do Espiritismo era introduzi-lo numa realidade nascente, numa verdadeira problemática em ebulição, num processo histórico em princípio de definição, e principalmente “numa nova ordem de ideias”.  Hoje, é introduzir esse alguém num processo já definido, e não apenas numa ordem de ideias, mas também no quadro histórico em que essa ordem surgiu. Dessa maneira, é introduzi-lo também na própria introdução de Kardec.  

Sem o exame histórico do problema mediúnico, por exemplo, os estudantes de hoje estarão ameaçados de flutuar no abstrato. Introduzindo-se numa ordem de ideias, sem o conhecimento de suas raízes históricas, arriscam-se a confundir, como fazem os leigos, mediunismo e Espiritismo, ou seja, o processo mediúnico de desenvolvimento espiritual do homem, com o Espiritismo. Arriscam-se, ainda mais, a aturdir-se com fatos mediúnicos rudimentares, considerando-os, por sua aparência extravagante, como novidade. Por outro lado, dificilmente compreenderão a aparente contradição existente no fato de ser o Espiritismo, ao mesmo tempo, uma doutrina moderna e um processo histórico provindo das eras mais remotas da Humanidade.  

Existe ainda o problema religioso, e particularmente o das ligações do Espiritismo com o Cristianismo, que somente uma introdução histórica pode esclarecer”.

Isto é o que tentaremos fazer neste pequeno ensaio. 

*

“Vos adorais o que não sabeis; mas a hora vem, e agora é, em que os  verdadeiros  adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade;  porque  o  Pai  procura a tais  que assim O adorem.”  - Jesus.  (Jo., 4:22 a 24.)

Esta parte do diálogo entre Jesus e a mulher samaritana à beira do poço de Jacó, transcendendo o seu mero aspecto circunstancial-temporal, marca o exato momento em que Ele falava não apenas a ela, mas a toda a Humanidade acerca da urgente necessidade de romper com os mitos e fantasias de antanho, elevando-se aos alcandorados patamares onde viceja a luz da razão, ou seja: mostrava onde está a realidade espiritual, por sinal bem distante desta na qual ainda nos situamos. 

Os mitos perderam a força de expressão, não, porém, de conteúdo, por estarem ínsitos na história evolutiva
da própria criatura
 

Segundo Joanna de Ângelis trazemos uma herança arquetípica de mitos e fantasias, dos períodos iniciais da evolução do pensamento, que prossegue submetendo-nos e subjugando-nos e, consequentemente, impedindo-nos de vislumbrar os horizontes espirituais e conquista, evidentemente obstando também a nossa almejada alforria espiritual, meta, aliás, assinada por Deus para todas as Suas criaturas. 

Acompanhemos as palavras da nobre Mentora :

“(...) Os vultos mitológicos do Panteão greco-romano, ou os deuses Todo-Poderosos da herança oriental, têm ressurgido com força bastante singular nos mais diferentes períodos das transatas civilizações, tomando forma dominadora na atualidade.

O renascer de culturas bárbaras adotadas como exibicionismo pela moderna juventude, não apenas ressuscita atavismos que remanescem de suas reencarnações anteriores, ainda vivas no inconsciente, senão, também, como expressões violentas do instinto de sobrevivência, agressivo por mecanismos de defesa e de auto-realização, chamando a atenção exteriormente, a fim de ocultar os conflitos internos de cada um, a timidez, o medo da sociedade, assim formando novos grupos de identificação, nos quais se homiziam, dando largas ao primarismo neles jacentes.

Por outro lado, o mito que permanece vivo no indivíduo gera novos deuses, aos quais se submete, criando linguagem própria de comunicação, através da qual se sente elegido, depredando, agredindo os outros grupos sociais e consumindo-se na alucinação das drogas em terríveis estados de consciência alterados, que se manifestam em desequilíbrio e morte.

O exacerbado culto ao corpo evoca o helenismo subjacente e os ideais dos gladiadores nas arenas, conquistando glórias enquanto matavam, promovendo o ego destruidor em detrimento do “Self” profundo e realizador.

As expressões positivas dos mitos ancestrais constituíram instrumentos  estimuladores para o crescimento de incontáveis gerações que se fascinavam com esses arquétipos inerentes ao ser humano, e procedentes das forças vivas da Natureza.

Face ao desenvolvimento ântropo-sócio-psicológico, a identificação do mito como recurso de evolução experimentou uma necessária releitura, concluindo-se que, na maioria das vezes, transformando-se em fantasia, afastava as mentes e as emoções da realidade, propiciando fugas espetaculares para longe da realidade, com imensos prejuízos para o amadurecimento interior.

Parecendo haver sucumbido, os mitos perderam a força de expressão, não, porém, de conteúdo, por estarem ínsitos na história evolutiva da própria criatura.

Recorde-se que, à medida que as velhas histórias da carochinha e outras foram sendo deixadas à margem nos programas educacionais, a industrialização dos povos e as lutas pela aquisição consumista das pessoas produziram terríveis vazios existenciais, roubando o significado profundo da Vida humana.

Ante a ausência de uma linguagem psicológica própria para preencher as lacunas de objetivo no transcurso da Vida física, foram criados novos deuses, conforme os padrões comportamentais do momento, mascarando muitos conflitos e dando curso à vigência de mitos que pudessem superar a desinteressante e cansativa jornada operacional, com o qual o ser se encontra a braços”. 

Os mitos e fantasias ancestrais ressurgiram nas músicas ruidosas, primitivas, exigindo os movimentos
tribais do corpo
 

O peso dos atavismos é tão considerável que até mesmo ao tempo de Moisés podemos flagrar a sua ação imediatista: Enquanto Moisés subia ao Monte Sinai para receber os transcendentais procedimentos novos que iriam alterar o “status quo” da massa ignara, o poviléu não perdeu tempo: fundiu com ouro um bezerro ao qual cultuavam no momento em que Moisés descia com as Tábuas da Lei.  Evidentemente a imagem do bezerro de ouro falava mais de perto às suas necessidades de proteção, isto é, materializaram um recurso mais palpável para resolver as fobias coletivas, num flagrante desvio doutrinário da linha que Moisés estava apresentando.

Vejamos o registro de tal ocorrência na narrativa do próprio Legislador Hebreu : “(...) e as duas tábuas do concerto estavam em minhas mãos; e olhei, e eis que havíeis pecado contra o Senhor vosso Deus; vós tínheis feito um bezerro de fundição; cedo vos desviastes do caminho que o Senhor vos ordenara. Então peguei das duas tábuas, e as arrojei de ambas as minhas mãos, e as quebrei aos vossos olhos”.

Continuemos com a conclusão de Joanna de Ângelis:

“(...) Regurgitantes, os mitos e fantasias ancestrais, ressurgiram nas músicas ruidosas, primitivas, exigindo os movimentos tribais do corpo, com os acepipes da exacerbada sensualidade, favorecendo os jogos exaustivos do sexo e da embriaguez dos sentidos, como fontes de prazer e abismos de esquecimento da responsabilidade de consciência perante as exigências da evolução intelecto-moral; os desportos ressuscitaram os seus gladiadores, nos mais violentos, ou trouxeram de volta os semideuses das competições de todo gênero, empenhados em vencer sempre, sem o menor respeito pelo prazer de competir; o profissionalismo impiedoso disseminou organizações, algumas criminosas, sem dúvida, nas quais o atleta é apenas objeto de interesse comercial, que deve ser eliminado quando já não atenda às paixões mafiosas e às dos fanáticos que os adoram, matam e morrem por eles, terminando por devorá-los também”.

Após esta necessária digressão onde já podemos perceber algo acerca do porquê de tanta incoerência doutrinária nos arraiais espiritistas, uma vez que os “desvios” estão arraigados em nosso caldo cultural, vamos acompanhar o lúcido raciocínio de Herculano Pires, para ficarmos mais bem situados na questão, viajando com ele num proveitoso “flashback”  histórico. Para tal, vamos extratar alguns tópicos de seu livro (1) apontado por uma pesquisa da Candeia Distribuidora de Livros de Catanduva (SP) como um dos dez livros espíritas do século 20, onde estão consignados os testemunhos de vários sábios, entre eles Ernesto Bozzano que, por sua vez, apoiou suas elucubrações científicas nas pesquisas do antropólogo Andrew Lang e do etnólogo Max Freedom Long, realizadas entre as tribos da Polinésia, para mostrar a existência dos fenômenos espíritas no horizonte tribal e, conseguintemente a crença na sobrevivência do espírito humano.

Observamos, assim, que desde as mais prístinas eras, o homem já identificava “uma força” além da matéria. Daí surgiram os mitos e seu cortejo de fantasias. Não obstante, é razoável constatar que das selvas à civilização, os Espíritos ensinam aos homens que a Vida não se encerra no túmulo, como não principia no berço.

Quando de nômade o homem passou às primeiras formas sedentárias de vida social, vemos o animismo desenvolver-se no plano da racionalização. Esse recuado período é também conhecido como “horizonte agrícola”, do qual ainda hoje existem fortes resquícios como veremos mais adiante. 

O conhecimento dos processos históricos é indispensável ao espírita, para imunizá-lo contra as deturpações místicas
da doutrina
 

Estamos naquele período hegeliano, e por isso mesmo dialético, em que a razão se desenrola no processo histórico, entendido este como o progresso do homem na Terra.   As invenções, o emprego de instrumentos, o aumento demográfico e o desenvolvimento mental processam-se de maneira simultânea, e é precisamente do desenvolvimento mental que vai surgir uma consequência curiosa: o aprofundamento da crença tribal nos Espíritos, num sentido de personalização, envolvendo os aspectos e os elementos da Natureza. A experiência concreta que deu ao homem primitivo o conhecimento da existência dos Espíritos alia-se agora ao uso mais amplo das categorias da razão. As duas formas gerais de racionalização anímica são a concepção da Terra-Mãe e a do Céu-Pai. Essas formas aparecem bem nítidas no pensamento chinês, que conservou até os nossos dias os elementos característicos do “horizonte agrícola”. O Céu é o deus-pai, que fecunda a terra, deusa-mãe”.  

Podemos observar, assim que o dogma da virgindade de Maria, mãe de Jesus e a “fecundação divina” que pretensa e ousadamente tenta explicar a divindade do Cristo. nada mais é senão um “xerox” ostensivo e grosseiro, diríamos um “plágio”, dos mitos pagãos feito pela casta sacerdotal. Mais adiante veremos que a utilização do pão e do vinho realizada até hoje em várias denominações religiosas tem a mesma origem, pois os religiosos da Idade Média não entendendo a essência do ensinamento de Jesus na última ceia, ao referir-Se ao pão e ao vinho, equivocadamente materializaram o preceito e perderam o rumo do seu real sentido. A mesma fonte forneceu também a origem do sacramento do batismo pela água, conforme também veremos. Mas, como podemos notar desde já, nem mesmo originalidade os inventores das religiões tiveram, vez que simplesmente repetiram edições reformadas e mal alinhavadas de modelos existentes no passado.

Continuemos com Herculano Pires:

“(...) Na civilização egípcia, há uma inversão de posições: O Céu é a mãe e a Terra é o Pai; e dentro da ancestral teogamia egípcia, os Faraós eram também portadores de dupla natureza: a humana e a divina, porque eram filhos da rainha com o deus-solar. Não eram, portanto, filhos de um homem, e nem mesmo de um homem-deus, mas do próprio Deus, que através de processo divinos fecundava a rainha. 

O conhecimento desses processos históricos é indispensável ao espírita, para imunizá-lo contra as deturpações místicas ou supersticiosas da doutrina, tão comuns num mundo que, apesar de se orgulhar do seu progresso científico, ainda não se libertou de sua pesada herança mitológica.” (Este artigo será concluído na próxima edição desta revista.)

 

Nota:

(1) PIRES, José Herculano. O Espírito e o Tempo. 3.ed.São Paulo:EDIECEL, 1979.
 

 


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O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita