Ensaio sobre as
raízes das
incoerências
doutrinárias
O Espiritismo é
uma síntese dos
esforços humanos
para compreensão
do mundo e da
vida
(Parte 2 e
final) *
“A fé ingênua,
imposta pela
autoridade e a
tradição,
derrete-se
como cera
frágil, ao
fogo da
razão.”
- Herculano
Pires
Segundo
Herculano Pires
(1),
“(...) Os mitos
do “horizonte
agrícola”(2)
exercem ainda
poderosa
influência em
nosso mundo.
Isso contribui
para o
descrédito das
religiões, em
face dos
estudiosos de
história, e mais
ainda, dos que
tratam de
mitologia.
|
|
Rogério
Coelho |
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Osíris, por
exemplo, como típico
deus agrário, parece
constituir uma prova das
origens míticas do dogma
da ressurreição. Quando
os cristãos proclamam a
ressurreição de Cristo,
os estudiosos sorriem
com desdém, lembrando a
ressurreição de Osíris. |
Vejamos por quê:
Osíris, filho da
Terra e do Céu,
cresce, viceja,
esplende, e
então é ceifado,
retalhado ou
moído, e por fim
enterrado. Mas
da terra, como
as sementes,
Osíris renasce,
para começar
novo ciclo,
semelhante ao
anterior. Morto
e espostejado
por Set, seu
irmão, é
ressuscitado por
sua esposa e
irmã, a deusa
Ísis, através de
rituais
especiais.
Está bem visível
a analogia
agrária. Osíris
é como o trigo,
que depois da
ceifa sofre a
debulha, volta a
ser enterrado na
semeadura, e por
fim renasce. Às
vezes, associado
ao Nilo, é um
deus fluvial.
Cresce com a
inundação,
declina e morre
na vazante, mas
depois
ressuscita e faz
nascerem as
plantas, com o
poder mágico das
águas.
Osíris,
deus-fluvial,
está
naturalmente
ligado ao
cultivo da
terra. No seu
aspecto fluvial,
porém,
apresenta-nos um
elemento novo,
que é a magia da
água. Vemos nele
a “água pura”,
que serve para
purificar a
terra seca,
estéril,
poeirenta, e com
ela os homens e
os animais; a
“água da
renovação”,
usada largamente
nas abluções
sagradas e
utilizadas nas
formas
batismais, como
no caso clássico
de João Batista;
e, por fim, a
“água
fecundante”, que
representa a
virilidade do
deus-fluvial,
fecundando a
terra.
O dogmatismo
religioso não
consegue
furtar-se ao
impacto dessas
comparações.
Somente a “fé
raciocinada”,
como queria
Kardec, pode
enfrentar
serenamente essa
análise
histórica, sem
perder-se na
negação ou
extraviar-se na
dúvida. De outro
lado, a razão
céptica, por
mais cultivada
que seja, não
consegue
penetrar a
essência do mito
agrário. Assim
como a fé
necessita da luz
da razão, esta
luz, por sua
vez, necessita
do pavio da fé.
O Espiritismo
demonstra que o
mito agrário é
essencialmente
analógico, nasce
do poder
comparativo da
razão. Esse
poder assimilou,
desde a era
tribal, a
ressurreição
humana,
demonstrada
pelos fatos
mediúnicos, à
ressurreição
vegetal. Sem a
prova material
da existência do
Espírito, da
sobrevivência do
homem, o mito
agrário se reduz
ao seu aspecto
analógico, não
deixando
perceber os
motivos
profundos da
analogia. Daí a
descrença e o
sorriso irônico
dos “sábios”,
que na Verdade
deviam esperar
para sorrir mais
tarde, uma vez
que os que riem
por último riem
melhor.
Da impregnação
mítica do
pensamento
religioso
Agrário, também,
é o mito da
Virgem-Mãe, que
adquire
amplitude social
e política na
doutrina da
teogamia
egípcia. A
terra,
deusa-mãe, é
virgem antes e
depois do parto,
pois não sai
maculada da
fecundação e
está sempre em
estado de
pureza.
Fecundada pelo
deus celeste,
floresce nas
messes,
embalando no seu
colo materno o
Messias, ou
seja, o
deus-solar, que
traz a luz, a
Vida e a fartura
das colheitas
após o inverno.
O mito agrário
da Virgem-Mãe
tem ainda o seu
aspecto
astronômico, à
semelhança de
todos os
deuses-agrários,
uma vez que a
Terra e o Céu se
conjugam no
mistério da
fecundação. A
constelação da
Virgem é a
primeira a
aparecer no Céu,
após o solstício
do inverno. Dela
nasce o Sol, o
Messias. E a
constelação
continua virgem,
após o
nascimento. A
palavra “messe”,
como se vê, tem
um grande poder
mítico: dela
derivam o nome
do Messias e do
culto que lhe
atribuem, mais
tarde
representado na
liturgia da
missa.
Assim também o
mistério do pão
e do vinho. O
pão representava
nos mistérios
gregos a deusa
Demeter, ou a
Ceres para os
romanos, mãe dos
cereais. O vinho
representava
Baco ou
Dionísio, deuses
da alegria, da
vida, e,
portanto do
Espírito. Comer
o pão e beber o
vinho era
simbolizar a
fecundação da
matéria pelo
poder do
Espírito. A
matéria
impregnada pelo
poder do
Espírito era
representada,
nas cerimônias
religiosas
pagãs, pelo pão
embebido de
vinho. Quando
os hebreus
chegaram a Canaã
encontraram essa
prática entre os
cananitas.
Todo o horizonte
agrícola se
mostra dominado
por essa
simbologia
mágica do pão e
do vinho, de que
o próprio Cristo
se serviu, não
para sujeitar os
homens ao
símbolo, mas
para ilustrá-lo
através dele.
Bastam esses
exemplos, para
vermos a
intensidade da
impregnação
mítica do
pensamento
religioso
contemporâneo. O
Espiritismo luta
contra essa
impregnação,
libertando o
homem do peso
esmagador do
horizonte
agrícola, para
conduzi-lo ao
horizonte
espiritual, que
Jesus anunciou à
mulher
samaritana.
Se os homens do
horizonte
agrícola não
podiam conceber
o Deus-Único
senão por uma
forma
sincrética, uma
mistura de Deus
e de Homem, os
do horizonte
espiritual irão
concebê-lo de
maneira mais
pura. Não se
trata, porém, de
dois Deuses, e
sim de um mesmo
Deus, visto de
duas maneiras.
Por trás de
todas as formas
de Deus,
encontra-se uma
realidade única,
que é o próprio
Deus. Isso o que
permitia a Jesus
dizer-se filho
de Jeová e ao
mesmo tempo
apontar o Seu
Pai universal,
em espírito e
verdade.
Da mesma
maneira, os
princípios
fundamentais da
Bíblia não são
negados, mas
confirmados
pelos
Evangelhos. A
Lei não é
destruída, mas
confirmada. Mais
de uma vez nos
servirá de
esclarecimento a
afirmação de
Paulo: “A lei
era o pedagogo
para nos
conduzir a
Cristo”.
O processo
histórico não é
contraditório,
mas progressivo
A Torá judaica
não valia pelas
suas normas
exteriores e
transitórias,
circunstanciais,
mas pela sua
substância. Essa
substância é que
prevalece, sendo
confirmada por
Jesus, nos dois
mandamentos
principais:
“Amar a Deus
sobre todas as
coisas e ao
próximo como a
si mesmo”. O
processo
histórico não é
contraditório,
mas
progressivo.
Quando não
sabemos enxergar
as linhas da
evolução, em seu
desenvolvimento
natural,
enxergamos
apenas as
aparentes
contradições das
coisas. Assim
como a ideia de
Deus evolui com
os homens, desde
a litolatria até
as formas
mitológicas, e
destas à
concepção
espiritual que
hoje aceitamos,
assim também os
princípios e os
postulados
bíblicos vão
atingir sua
verdadeira
expressão nos
Evangelhos, e
por fim sua
espiritualização
no Espiritismo.
Há um
encadeamento
perfeito no
processo
histórico, que
não podemos
perder de
vista. Graças
a esse
encadeamento os
Espíritos
puderam dizer a
Kardec que o
Espiritismo é o
restabelecimento
do Cristianismo,
o que vale
dizer: a última
fase do
desenvolvimento
histórico do
Cristianismo.
Quando sabemos
que este
originou do
Judaísmo,
representando um
desenvolvimento
natural da
religião
judaica, então
compreendemos
que o
Espiritismo,
como queria
Kardec e como
sustentava Léon
Denis, é o ponto
mais alto que
podemos atingir,
até hoje, em
nossa evolução
religiosa.
Jeová, o
deus-agrário,
transforma-se no
Pai evangélico,
para chegar à
“Inteligência
Suprema”, no
Espiritismo.
Jeová se depura,
e com ele se
depuram os ritos
do seu culto,
que por fim se
transformam na
“adoração em
espírito e
verdade”, de que
falava Jesus.
O “horizonte
agrícola”
permanece
subjacente em
nossa
mentalidade
moderna. Ainda
não conseguimos
libertar-nos de
suas fórmulas
agrárias, de
seus deuses e
seus cultos,
carregados de
sacrifícios
animais e
vegetais. O
“horizonte
civilizado”
desenvolve-se
sob os signos
agrícolas. Mas
virá, por fim, o
momento de
transição para o
“horizonte
espiritual”, que
assinalará uma
fase de
transcendência
na vida humana.
Nos Estados
Teológicos, a
estrutura
política
assemelha-se à
estrutura
metafísica ou
divina. A
Religião e o
Estado se
modelam
reciprocamente,
uma sobre o
outro, e
vice-versa. A
classe
sacerdotal,
racionalmente
organizada,
elabora os mitos
no plano
intelectual,
criando a
teologia,
estruturando o
ritualismo,
estabelecendo a
genealogia dos
deuses e as
formas de
relações entre
estes e os
homens.
Na teogamia
egípcia a
genealogia
divina se
prolonga na
genealogia
humana dos
faraós, graças à
fecundação da
rainha por um
deus.
Amalgamados
assim os dois
poderes, o
temporal e o
divino, na
própria carne
dos monarcas, os
Estados
Teológicos
tornam-se
monolíticos.
Ainda na Grécia
vemos isso: a
figura humana de
Zeus, na sua
corte olímpica,
refletindo no
espaço a
estrutura
política da
nação”.
Evolução lenta e
penosa
“Conhecereis a
Verdade e a
Verdade vos
libertará”.
-
Jesus. (Jo.,8:32.)
Continuemos com
Herculano Pires
na obra citada:
“(...) Com o
tempo o homem
vai se
libertando de si
mesmo, da sua
condição humana,
construída
penosamente
através das
estruturas
sociais do
horizonte tribal
e do horizonte
agrícola,
procurando uma
forma mais
precisa de
definição de sua
natureza. Na
organização
tribal, ele se
libertou da
condição animal
e do jugo
absoluto das
forças da
Natureza, para
elaborar a sua
condição
própria. Na
organização
agrícola, ele
aprendeu a
dominar a
Natureza e
submetê-la ao
seu serviço, mas
caiu prisioneiro
da estrutura
social. No
horizonte
civilizado ele
começa a romper
os liames da
organização
social, para
descobrir-se a
si mesmo, o que
só fará quando
se tornar um
indivíduo.
A evolução do
Espírito está
bem clara nesse
imenso processo
de
desenvolvimento
histórico da
Humanidade. O
homem se eleva
progressivamente
da selva à
civilização,
através de
períodos
históricos
definidos como
“horizontes”,
ou seja, como
universos
próprios, nos
quais os
diferentes
poderes da
espécie vão
sendo treinados
em conjunto, até
que o
desenvolvimento
da razão
favoreça o
processo de
individualização.
Primeiramente, o
homem se destaca
da Natureza
através do
conjunto tribal;
depois, reafirma
a sua
independência
através dos
conjuntos mais
amplos das
civilizações
agrárias; e,
depois, ainda,
constrói os
conjuntos mais
complexos das
grandes
civilizações
orientais.
Nesses
conjuntos,
porém, o homem
descobre a
possibilidade de
destacar-se
individualmente
da estrutura
social. O
espírito humano
se afirma como
individualidade,
como entidade
autônoma, capaz
de superar não
somente a
natureza, mas a
própria
Humanidade”.
Segundo Joanna
de Ângelis:
“(...) O ser
humano, avança
para a
Realidade, na
qual, queira ou
não, se encontra
mergulhado, por
ser centelha
viva e
inextinguível...
Lentamente a
evolução vai se
impondo de
maneira
inevitável
porque o
progresso é
inestancável.
Passa a onda que
avassala por um
momento,
sucedendo à
outra, que
também
desaparecerá, e
a busca do “Si”
propiciará
diferente
conduta, abrindo
espaço para a
autenticidade,
para a
interiorização,
para o
autodescobrimento...
É necessário
guardarmo-nos da
obtusidade dos
misoneístas
revéis
Por muito tempo
a prevalência do
mito no
inconsciente
humana regerá o
seu
comportamento.
Inobstante essa
presença,
desenhar-se-ão
programas de
ascensão,
mediante os
sonhos de
beleza, de paz e
liberdade plena,
que darão
surgimento a
futuros
arquétipos que
se insculpirão
no inconsciente,
procedendo das
experiências no
mundo
espiritual, onde
a vida estua, e
ressumando na
Terra, onde se
desenvolverão os
programas da
evolução”.
A Doutrina
Espírita nos
coloca frente a
frente com o
“horizonte
espiritual”
que Jesus
mencionou à
mulher
samaritana;
horizonte este
totalmente
diferenciado de
todos os outros
pelos quais
temos passado
nesta longa
peregrinação
evolutiva desde
os tempos das
cavernas e das
tribos
primitivas...
Para não
obstruirmos o
nosso processo
evolutivo,
deixando-o fluir
naturalmente,
sem peias,
faz-se
necessário
guardarmo-nos do
apoucamento e
obtusidade dos
misoneístas
revéis que,
anestesiados em
ancilosante
acomodação não
se deixam
permear pelo
conhecimento
espírita,
mimetizados que
estão pelo
verniz dos mitos
e fantasias de
antanho dos
quais não abrem
mão, presos que
estão aos
“horizontes”
antigos.
Conhecendo as
raízes
histórico-atávicas
dos arraigados
costumes que se
perdem na noite
dos tempos, fica
mais fácil
identificar –
hodiernamente –
os seus
corolários e,
consequentemente
podemos
trabalhar com
mais eficiência
no sentido de
erradicá-los dos
arraiais
espiritistas,
livrando tanto o
Movimento
Espírita quanto
as Casas
Espíritas de
todos os “usos e
costumes” ainda
comprometidos e
atrelados ao
passado de
ignorância de
onde
procedemos.
Tal a maneira de
projetarmo-nos
na direção do
“horizonte
civilizado”,
ou seja, do
“horizonte
espiritual”
atentos às
palavras de
Jesus à
Samaritana
(3):
“(...) Vós
adorais o que
não sabeis; mas
a hora vem, e
agora é, em que
os verdadeiros
adoradores
adorarão o Pai
em espírito e
verdade; porque
o Pai procura a
tais que assim O
adorem”.
Notas:
(2) Segundo
patamar da
evolução humana.
(Para maiores
esclarecimentos
leia a 1ª parte
deste artigo, na
edição anterior
desta revista.)
(3) João, 4:22 e
23.
* A primeira
parte deste
artigo foi
publicada na
edição 106, de
10 de maio de
2009, desta
revista.