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por Rogério Coelho

 

A estoica combatividade kardequiana 


Os Saulos do Espiritismo de hoje, serão, mais tarde, os São Paulo;

esperemos que não teremos que registar os Judas. 


Numa cidade comercial, ao tempo de Kardec, o Espiritismo contava com numerosos adeptos, aos quais a Doutrina fazia um grande bem, explicando e consolando como nenhuma outra religião antes o fizera. 

Machucado em seus brios, e sentindo-se incomodado com a “concorrência”, um determinado eclesiástico se fez propagador de várias calúnias contra o Codificador.  Espalhava o dito clérigo, à boca-pequena, que Kardec ficara milionário em decorrência da venda dos livros espíritas; que em sua casa o luxo chegava ao requinte dos mais belos tapetes de Aubusson. Conheceram-no pobre, em Lyon, mas agora, até carruagem a 4 cavalos possuía! E não só isso: era proprietário de um trem principesco para seus deslocamentos a Paris... E tome calúnia!!!

Eis a resposta que Kardec[1] deu à pessoa que o informou acerca das diatribes do ingênuo (e na verdade invejoso) abade:

“Meu caro senhor, ri muito dos milhões com os quais me gratifica, tão generosamente, o Sr. abade V..., tanto mais que estava longe de desconfiar dessa boa fortuna. O relatório feito à Sociedade de Paris, antes do recebimento de vossa carta, vem infelizmente reduzir essa ilusão a uma realidade muito menos dourada. De resto, não é a única inexatidão de vossa narração fantástica; primeiro, jamais morei em Lyon, e não vejo, pois, como se me conheceu ali pobre; quanto ao meu carro de luxo a quatro cavalos, lamento dizer que se reduz aos rocins[2] de um carro de aluguel que tomo apenas cinco ou seis vezes por ano por economia. É verdade que antes das estradas de ferro, fiz várias viagens em diligência; sem dúvida, confundiu-se... Mas esqueço que nessa época o Espiritismo não estava em questão, e que é ao Espiritismo que devo, segundo ele, minha imensa fortuna; onde pois, pescou tudo isso senão no arsenal da calúnia? Isto parece tanto mais verossímil, se se pensa na natureza da população no meio da qual se vendem esses ruídos. Convir-se-á que é preciso ter bem poucas boas razões para ser reduzido a tão ridículos expe­dientes para desacreditar o Espiritismo.

O Sr. abade não vê que vai direto contra seu objetivo, porque dizer que o Espiritismo me enriqueceu a esse ponto, é confessar que ele está imensamente difundido; portanto, se está tão difundido, é que ele agrada. Assim, o que gostaria de fazer voltar contra o homem, tornar-se-ia em proveito do crédito da Doutrina. Fazei, pois, crer, segundo isso, que uma doutrina capaz de proporcionar, em alguns anos, milhões ao seu propagador, seja uma utopia, uma ideia vazia! Tal resultado seria um verdadeiro milagre, porque não tem exemplo de que uma teoria filosófica jamais haja sido uma fonte de fortuna. Geralmente, como para as invenções, nela se consome o pouco que se tem, e ver-se-ia que é um pouco o caso em que me encontro, sabendo-se tudo o que me custa a obra à qual me devotei e à qual sacrifico, além disso, o meu tempo, minhas vigílias, meu repouso e minha saúde, mas tenho por princípio guardar para mim o que faço e de não gri­tá-lo sobre os telhados.  Para ser imparcial, o Sr. abade deveria colocar em paralelo as quantias que as comunidades e os conventos subtraem dos fiéis; quanto ao Espiritismo, mede sua influência sobre o bem que faz, o número de aflitos que consola, e não sobre o dinheiro que produz.

Com um trem principesco, deve-se dizer que é preciso uma mesa em proporção; que diria, pois, o Sr. abade se visse o meu repasto mais suntuoso, aquele em que recebo meus amigos?   Encontrá-los-ia bem magros perto do magro de certos dignitários da Igreja, que os desdenharia, provavelmente, pela sua quaresma mais austera. Eu lhe informarei, pois, uma vez que o ignora, e a fim de lhe poupar a pena de me conduzir sobre o terreno da comparação, que o Espiritismo não é, e não pode ser, um meio de enriquecer; que repudia toda especulação de que poderia ser objeto; que ensina a fazer pouco caso do temporal, a se contentar com o necessário e não procurar as alegrias do supérfluo que não são o caminho do Céu; se todos os homens entre si fossem espíritas, não se invejariam, não se teriam ciúmes e não se esfolariam uns aos outros; não diriam mal de seu próximo, e não se caluniariam, porque ele ensina esta máxima do Cristo: “não façais aos outros o que não gostaríeis que vos façam”. É para pô-la em prática que não nomeio, o Sr. abade V...

O Espiritismo ensina ainda que a fortuna é um depósito do qual era preciso dar conta, e que o rico será julgado segundo o em­prego que tiver feito dela. Se tivesse a que me é atribuída, e se, sobretudo, eu a devesse ao Espiritismo, seria perjuro aos meus princípios, empregando-o para a satisfação do orgulho, e para a posse dos gozos mundanos, em lugar de fazê-la servir à causa da qual abracei a defesa.

Mas, diz-se, e vossas obras?  Não vendestes caro os manus­critos? Um instante; é entrar aqui no domínio privado, onde não reconheço a ninguém o direito de se imiscuir; tenho sempre hon­rado os meus negócios, não importa ao preço de quais sacrifícios e de quais privações; não devo nada a ninguém, ao passo que mui­to me devem, sem isto, teria mais do dobro do que me resta, o que faz que, em lugar de subir a escala da fortuna, eu a desço. Não de­vo, pois, conta dos meus negócios a quem quer que seja, o que é bom constatar; todavia, para contentar um pouco os curiosos, que não têm nada de melhor a fazer do que se misturar com aquilo que não lhes diz respeito, direi que, se tivesse vendido meus manus­critos, não teria feito senão usar do direito que todo trabalhador tem de vender o produto de seu trabalho; mas não vendi nenhum deles; ocorre que dei, pura e simplesmente, no interesse da coisa, e que se vende como se quer sem que disso me retorne uma moeda. 

Os manuscritos se vendem caros quando são obras conhecidas, cujo sucesso é assegurado de antemão, mas em nenhuma parte encontram-se editores bastante complacentes para pagar, a preço de ouro, obras cujo produto é hipotético, então quando não querem mesmo correr a chance dos fracassos de impressão; ora, sob este aspecto, uma obra filosófica tem cem vezes menos valor do que os romances unidos a certos nomes.  Para dar uma ideia dos meus enormes benefícios, direi que a primeira edição de O Livro dos Espíritos, que empreendi por minha conta e por meus riscos e perigos, não tendo encontrado editor que haja querido dela se encarregar, me trouxe líquido, todas as despesas feitas, todos os exemplares esgotados, tanto vendidos quanto dados, em torno de quinhentos francos, assim como posso isso justificar por peças autênticas não sei mais qual gênero de carro de luxo poder-se-ia conseguir com isto. Na impossibilidade em que me encontrei, não tendo ainda os milhões em questão, de fazer por mim mesmo as despesas de todas as minhas publicações, e sobretudo me ocupar das relações necessárias para a venda, cedi, por um tempo, o direito de publicar, mediante um direito de autor calculado a tanto de centavos por exemplar vendido; de tal sorte que sou totalmente estranho ao detalhe da venda, e aos negócios que os intermediários possam fazer, sobre as remessas­ feitas pelos editores aos seus correspondentes, comercializações das quais declino a responsabilidade.

Quanto ao produto que possa me reverter sobre a venda de minhas obras, não tenho a me explicar nem sobre a quantia, nem sobre o emprego; tenho certamente bem o direito de dele dispor como melhor me pareça; no entanto, não se sabe se esse pro­duto não tem uma destinação determinada, da qual não pode ser desviada; mas é o que se saberá mais tarde; porque, se fantasias­se, um dia, a alguém escrever minha história sobre dados semelhantes àqueles que são relatados acima, importaria que os fatos fossem restabelecidos em sua integridade.  É por isso que deixarei memórias circunstanciadas sobre todas minhas relações e to­dos meus negócios, sobretudo no que concerne ao Espiritismo, a fim de poupar, aos cronistas futuros os erros nos quais podem cair sobre a fé do “ouvir-dizer” dos estouvados, das más línguas, e das pessoas interessadas em alterar a verdade, às quais deixo o prazer de deblaterar à sua vontade, a fim de que, mais tarde, sua má fé seja mais evidente.

Com isso me importaria muito pouco, por mim pessoalmente, se meu nome não se achasse doravante intimamente ligado à história do Espiritismo. Por minhas relações, naturalmente, possuo sobre esse assunto os documentos mais numerosos e mais autênticos que existem; pude seguir a Doutrina em todos os seus de­senvolvimentos, em observar todas as peripécias como disso pre­vi as consequências. Para todo homem que estuda esse movimento, é da última evidência que o Espiritismo marcará uma das fases da Humanidade; é, pois, necessário que se saiba, mais tarde, que vicissitudes teve que atravessar, que obstáculos encontrou, que inimigos procuraram entravá-lo, de que armas se serviram para combatê-lo; não é menos que se saiba por quais meios pôde triunfar, e quais são as pessoas que, pelo seu zelo, seu devotamento, sua abnegação, terão concorrido eficazmente para a sua propagação; aqueles cujos nomes e os atos merecerão ser apontados para o reconhecimento da posteridade, e que me faço um dever de inscrever em meus livros de lembrança. Esta história, compreende-se, não pode ainda aparecer tão cedo; o Espiritismo acaba apenas de nascer, e as fases mais interessantes de seu estabelecimento não estão ainda cumpridas. Poder-se-ia, aliás, dizer que entre os Saulos do Espiritismo de hoje, estarão, mais tarde, os São Paulo; esperemos que não teremos que registar os Judas.

Tais são, meu caro senhor, as reflexões que me sugeriram os ruídos estranhos que me retornaram; se os relevei, não foi pelos espíritas de vossa cidade, que sabem o que podem tomar sobre minha conta e que puderam julgar, quando fui vê-los, se houvesse em mim os gostos e as maneiras de um grande senhor.  Eu o faço, pois, por aqueles que não me conhecem e que poderiam ser induzidos em erro por essa maneira mais que leviana de fazer a história.

Se o Sr. abade V... prende-se a não dizer senão a verda­de estou pronto para lhe fornecer verbalmente todas as expli­cações necessárias para esclarecê-lo.

Inteiramente vosso,

             A.K.


 


[1] - KARDEC, Allan. Revue Spirite.junho de 1862. Araras: IDE, 1993, p. 179-183.

[2] - Cavalo de aspecto robusto, forte, empregado, sobretudo na caça e na guerra; cavalo de pequena estatura e/ou magro, fraco, sem vigor; rocinante. 


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita