A estoica combatividade
kardequiana
Os Saulos do Espiritismo de hoje, serão, mais
tarde, os São Paulo;
esperemos que não teremos que registar os Judas.
Numa cidade comercial, ao tempo de Kardec, o
Espiritismo contava com numerosos adeptos, aos
quais a Doutrina fazia um grande bem, explicando
e consolando como nenhuma outra religião antes o
fizera.
Machucado em seus brios, e sentindo-se
incomodado com a “concorrência”, um
determinado eclesiástico se fez propagador de
várias calúnias contra o Codificador. Espalhava
o dito clérigo, à boca-pequena, que Kardec
ficara milionário em decorrência da venda dos
livros espíritas; que em sua casa o luxo chegava
ao requinte dos mais belos tapetes de Aubusson.
Conheceram-no pobre, em Lyon, mas agora, até
carruagem a 4 cavalos possuía! E não só isso:
era proprietário de um trem principesco para
seus deslocamentos a Paris... E tome calúnia!!!
Eis a resposta
que Kardec deu
à pessoa que o informou acerca das diatribes do
ingênuo (e na verdade invejoso) abade:
“Meu caro senhor,
ri muito dos milhões com os quais me gratifica,
tão generosamente, o Sr. abade V..., tanto mais
que estava longe de desconfiar dessa boa
fortuna. O relatório feito à Sociedade de Paris,
antes do recebimento de vossa carta, vem
infelizmente reduzir essa ilusão a uma realidade
muito menos dourada. De resto, não é a única
inexatidão de vossa narração fantástica;
primeiro, jamais morei em Lyon, e não vejo,
pois, como se me conheceu ali pobre; quanto ao
meu carro de luxo a quatro cavalos, lamento
dizer que se reduz aos rocins de
um carro de aluguel que tomo apenas cinco ou
seis vezes por ano por economia. É verdade que
antes das estradas de ferro, fiz várias viagens
em diligência; sem dúvida, confundiu-se... Mas
esqueço que nessa época o Espiritismo não estava
em questão, e que é ao Espiritismo que devo,
segundo ele, minha imensa fortuna; onde pois,
pescou tudo isso senão no arsenal da calúnia?
Isto parece tanto mais verossímil, se se pensa
na natureza da população no meio da qual se
vendem esses ruídos. Convir-se-á que é preciso
ter bem poucas boas razões para ser reduzido a
tão ridículos expedientes para desacreditar o
Espiritismo.
O Sr. abade não vê que vai direto contra seu
objetivo, porque dizer que o Espiritismo me
enriqueceu a esse ponto, é confessar que ele
está imensamente difundido; portanto, se está
tão difundido, é que ele agrada. Assim, o que
gostaria de fazer voltar contra o homem,
tornar-se-ia em proveito do crédito da Doutrina.
Fazei, pois, crer, segundo isso, que uma
doutrina capaz de proporcionar, em alguns anos,
milhões ao seu propagador, seja uma utopia, uma
ideia vazia! Tal resultado seria um verdadeiro
milagre, porque não tem exemplo de que uma
teoria filosófica jamais haja sido uma fonte de
fortuna. Geralmente, como para as invenções,
nela se consome o pouco que se tem, e ver-se-ia
que é um pouco o caso em que me encontro,
sabendo-se tudo o que me custa a obra à qual me
devotei e à qual sacrifico, além disso, o meu
tempo, minhas vigílias, meu repouso e minha
saúde, mas tenho por princípio guardar para mim
o que faço e de não gritá-lo sobre os
telhados. Para ser imparcial, o Sr. abade
deveria colocar em paralelo as quantias que as
comunidades e os conventos subtraem dos fiéis;
quanto ao Espiritismo, mede sua influência sobre
o bem que faz, o número de aflitos que consola,
e não sobre o dinheiro que produz.
Com um trem principesco, deve-se dizer que é
preciso uma mesa em proporção; que diria, pois,
o Sr. abade se visse o meu repasto mais
suntuoso, aquele em que recebo meus amigos?
Encontrá-los-ia bem magros perto do magro de
certos dignitários da Igreja, que os
desdenharia, provavelmente, pela sua quaresma
mais austera. Eu lhe informarei, pois, uma vez
que o ignora, e a fim de lhe poupar a pena de me
conduzir sobre o terreno da comparação, que o
Espiritismo não é, e não pode ser, um meio de
enriquecer; que repudia toda especulação de que
poderia ser objeto; que ensina a fazer pouco
caso do temporal, a se contentar com o
necessário e não procurar as alegrias do
supérfluo que não são o caminho do Céu; se todos
os homens entre si fossem espíritas, não se
invejariam, não se teriam ciúmes e não se
esfolariam uns aos outros; não diriam mal de seu
próximo, e não se caluniariam, porque ele ensina
esta máxima do Cristo: “não façais aos outros
o que não gostaríeis que vos façam”. É
para pô-la em prática que não nomeio, o Sr.
abade V...
O Espiritismo ensina ainda que a fortuna é um
depósito do qual era preciso dar conta, e que o
rico será julgado segundo o emprego que tiver
feito dela. Se tivesse a que me é atribuída, e
se, sobretudo, eu a devesse ao Espiritismo,
seria perjuro aos meus princípios, empregando-o
para a satisfação do orgulho, e para a posse dos
gozos mundanos, em lugar de fazê-la servir à
causa da qual abracei a defesa.
Mas, diz-se, e vossas obras? Não vendestes caro
os manuscritos? Um instante; é entrar aqui no
domínio privado, onde não reconheço a ninguém o
direito de se imiscuir; tenho sempre honrado os
meus negócios, não importa ao preço de quais
sacrifícios e de quais privações; não devo nada
a ninguém, ao passo que muito me devem, sem
isto, teria mais do dobro do que me resta, o que
faz que, em lugar de subir a escala da fortuna,
eu a desço. Não devo, pois, conta dos meus
negócios a quem quer que seja, o que é bom
constatar; todavia, para contentar um pouco os
curiosos, que não têm nada de melhor a fazer do
que se misturar com aquilo que não lhes diz
respeito, direi que, se tivesse vendido meus
manuscritos, não teria feito senão usar do
direito que todo trabalhador tem de vender o
produto de seu trabalho; mas não vendi nenhum
deles; ocorre que dei, pura e simplesmente, no
interesse da coisa, e que se vende como se quer
sem que disso me retorne uma moeda.
Os manuscritos se vendem caros quando são obras
conhecidas, cujo sucesso é assegurado de
antemão, mas em nenhuma parte encontram-se
editores bastante complacentes para pagar, a
preço de ouro, obras cujo produto é hipotético,
então quando não querem mesmo correr a chance
dos fracassos de impressão; ora, sob este
aspecto, uma obra filosófica tem cem vezes menos
valor do que os romances unidos a certos nomes.
Para dar uma ideia dos meus enormes benefícios,
direi que a primeira edição de O Livro
dos Espíritos, que empreendi por minha conta
e por meus riscos e perigos, não tendo
encontrado editor que haja querido dela se
encarregar, me trouxe líquido, todas as despesas
feitas, todos os exemplares esgotados, tanto
vendidos quanto dados, em torno de quinhentos
francos, assim como posso isso justificar por
peças autênticas não sei mais qual gênero de
carro de luxo poder-se-ia conseguir com isto. Na
impossibilidade em que me encontrei, não tendo
ainda os milhões em questão, de fazer por mim
mesmo as despesas de todas as minhas
publicações, e sobretudo me ocupar das relações
necessárias para a venda, cedi, por um tempo, o
direito de publicar, mediante um direito de
autor calculado a tanto de centavos por
exemplar vendido; de tal sorte que sou
totalmente estranho ao detalhe da venda, e aos
negócios que os intermediários possam fazer,
sobre as remessas feitas pelos editores aos
seus correspondentes, comercializações das quais
declino a responsabilidade.
Quanto ao produto que possa me reverter sobre a
venda de minhas obras, não tenho a me explicar
nem sobre a quantia, nem sobre o emprego; tenho
certamente bem o direito de dele dispor como
melhor me pareça; no entanto, não se sabe se
esse produto não tem uma destinação
determinada, da qual não pode ser desviada; mas
é o que se saberá mais tarde; porque, se
fantasiasse, um dia, a alguém escrever minha
história sobre dados semelhantes àqueles que são
relatados acima, importaria que os fatos fossem
restabelecidos em sua integridade. É por isso
que deixarei memórias circunstanciadas sobre
todas minhas relações e todos meus negócios,
sobretudo no que concerne ao Espiritismo, a fim
de poupar, aos cronistas futuros os erros nos
quais podem cair sobre a fé do “ouvir-dizer” dos
estouvados, das más línguas, e das pessoas
interessadas em alterar a verdade, às quais
deixo o prazer de deblaterar à sua vontade, a
fim de que, mais tarde, sua má fé seja mais
evidente.
Com isso me importaria muito pouco, por mim
pessoalmente, se meu nome não se achasse
doravante intimamente ligado à história do
Espiritismo. Por minhas relações, naturalmente,
possuo sobre esse assunto os documentos mais
numerosos e mais autênticos que existem; pude
seguir a Doutrina em todos os seus
desenvolvimentos, em observar todas as
peripécias como disso previ as consequências.
Para todo homem que estuda esse movimento, é da
última evidência que o Espiritismo marcará uma
das fases da Humanidade; é, pois, necessário que
se saiba, mais tarde, que vicissitudes teve que
atravessar, que obstáculos encontrou, que
inimigos procuraram entravá-lo, de que armas se
serviram para combatê-lo; não é menos que se
saiba por quais meios pôde triunfar, e quais são
as pessoas que, pelo seu zelo, seu devotamento,
sua abnegação, terão concorrido eficazmente para
a sua propagação; aqueles cujos nomes e os atos
merecerão ser apontados para o reconhecimento da
posteridade, e que me faço um dever de inscrever
em meus livros de lembrança. Esta história,
compreende-se, não pode ainda aparecer tão cedo;
o Espiritismo acaba apenas de nascer, e as fases
mais interessantes de seu estabelecimento não
estão ainda cumpridas. Poder-se-ia, aliás, dizer
que entre os Saulos do Espiritismo de hoje,
estarão, mais tarde, os São Paulo; esperemos que
não teremos que registar os Judas.
Tais são, meu caro senhor, as reflexões que me
sugeriram os ruídos estranhos que me retornaram;
se os relevei, não foi pelos espíritas de vossa
cidade, que sabem o que podem tomar sobre minha
conta e que puderam julgar, quando fui vê-los,
se houvesse em mim os gostos e as maneiras de um
grande senhor. Eu o faço, pois, por aqueles que
não me conhecem e que poderiam ser induzidos em
erro por essa maneira mais que leviana de fazer
a história.
Se o Sr. abade V... prende-se a não dizer senão
a verdade estou pronto para lhe fornecer
verbalmente todas as explicações necessárias
para esclarecê-lo.
Inteiramente vosso,
A.K.
- Cavalo
de aspecto robusto, forte, empregado,
sobretudo na caça e na guerra; cavalo de
pequena estatura e/ou magro, fraco, sem
vigor; rocinante.